Contra a imagem
A torrente de fotos e vídeos do deputado André Fernandes em confronto com policiais militares durante manifestação contra o lockdown em Fortaleza mostra que ainda não entendemos a força da imagem
Jáder Santana
jaderstn@gmail.com
Há dois dias vejo, reproduzidas em velocidade de laser, imagens do deputado estadual cearense André Fernandes (Republicanos) impedindo as ações da polícia militar em sua tentativa de dispersar grupos que se manifestavam contra o lockdown em Fortaleza no último domingo, 14. Camisa branca, braços abertos. Cristo crucificado, um mártir, o paladino da justiça e das liberdades individuais. Ídolo impresso nos jornais, gestos repetidos nos noticiários de TV, voz replicada na rádio, retuítes, curtidas, compartilhamentos. Finalmente alçado à altura de ícone, triunfa o jovem de 23 anos.
“As metáforas e mitos, eu estava convencida, matam”, escreveu Susan Sontag muito antes de o vocábulo mito ter se consolidado como elemento aglutinador do pensamento retrógrado da extrema direita brasileira. Sim, os mitos matam. E as metáforas. Metáforas que operam tendo como base a empatia. A imagem de André Fernandes, metafórica, alegórica, penetra e se entranha como resultado dessa engrenagem empática. Identificados, seus seguidores vão ao delírio. Identificáveis, aqueles que não o conheciam são imediatamente fisgados pela imagem quase divina do deputado, seu representante direto, no exercício frontal de sua atribuição.
Os de oposição, os favoráveis ao lockdown, os que defendem a vida, os que usam máscara, as esquerdas, os que acreditam na vacina, os progressistas, os de centro, os equilibrados, todos esses, perdemos. Perdemos porque somos imunes às engrenagens da empatia gerada por e para representantes dessa política extrema e irresponsável. Estamos no pólo oposto, antônimo, da indiferença. Podemos não ser indiferentes quando compartilhamos suas imagens acompanhadas de críticas, mas agimos com indiferença quando deixamos que aquela seja apenas mais uma postagem perdida no infinito de conteúdos que acessamos todos os dias.
Quando operam, a metáfora e seu alicerce – a empatia -, ajudam a restaurar nossos sentidos. A partir da imagem do deputado de braços abertos, os que vão além da indiferença aprendem a ver mais, ouvir mais e sentir mais. A representação não torna a experiência do público idêntica à do personagem, mas permite que o espectador imagine e entenda. Não estou fisicamente com Fernandes em sua luta ingrata, mas entendo seu sacrifício. É esse o propósito da representação.
Mas, como também argumentou Sontag, a fotografia não é mais honesta que a pintura quanto a qualquer relação direta com o factual – ambas são incapazes de garantir o mundo tal como é observado. Quanto de realidade há na imagem do jovem deputado enfrentando a força alegadamente despótica da polícia e do governador? Em Sobre a fotografia, a ensaísta cita exemplos que ilustram “as complicadas relações entre uma metáfora e a coisa que ela representa, perverte, distorce e cria.” Antes de apertar o botão de compartilhar, deveria caber a cada usuário politicamente consciente um tom de mínima suspeita e descrença.
Mais suspeita e mais descrença quando o objeto dessa análise consciente é um deputado que, aos moldes de nosso mandatário executivo hipermidiático, precisa dessa exposição para frutificar e se expandir. Nada no rompante de falso resguardo democrático executado por Fernandes é gratuito. A camisa branca está ali por um motivo. Seus braços estão abertos para emular velhos símbolos. Ao invés de encarar a força policial, se posiciona de frente para seu público, para as câmeras. A imagem não teria o mesmo impacto se ele estivesse de costas para as lentes. “A sabedoria suprema da imagem fotográfica é dizer: ‘Aí está a superfície. Agora, imagine – ou, antes, sinta, intua – o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem este aspecto”, escreveu Sontag.
Talvez seja demais pedir que a grande imprensa volte à academia para refletir sobre critérios de noticiabilidade e responsabilidade social. Não houve mea culpa quando, por uma equação que envolveu conveniência e sensacionalismo, ajudaram a levar ao poder a mais abjeta das criaturas. Virar as costas para a exibição canastrona do deputado é subverter a lógica empresarial que sustenta a estrutura desses veículos, e não acredito que a grande mídia seja capaz de fazer isso. Cabe a nós, consumidores, usuários, leitores, estabelecer esse filtro. Sontag escreveu que “fotografar é essencialmente um ato de não intervenção.” Precisamos estar atentos para perceber quando o objeto da foto, consciente do poder da imagem, realiza essa intervenção às avessas.
Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. Está no Instragam e Twitter.