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Cronologia de uma insônia

Há quase três anos, sempre às segundas-feiras, o brasileiro vem renovando sua capacidade de passar as noites em claro
POR Jáder Santana
Foto: Agência Brasil

Há quase três anos, sempre às segundas-feiras, o brasileiro vem renovando sua capacidade de passar as noites em claro

Jáder Santana
jaderstn@gmail.com

Na segunda-feira, 29 de março de 2021, agindo sob pressão política do centrão, o presidente Jair Bolsonaro anuncia a substituição da titularidade de seis ministérios, incluindo a demissão do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e do chanceler Ernesto Araújo, do Ministério de Relações Exteriores. Tirou o sono da nação. 

Na segunda-feira, 15 de março de 2021, o médico cardiologista Marcelo Queiroga aceita o convite para assumir o Ministério da Saúde, ocupando a pasta que já havia sido comandada, com diferentes graus de incompetência, por Eduardo Pazuello, Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta. Dias depois, em pronunciamento após discreto ato de posse, Queiroga fala da importância de observar “evidências científicas” mas sinaliza que deve fazer uma gestão de continuidade. Tirou o sono dos sobreviventes. 

Na segunda-feira, 8 de março de 2021, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin anula as condenações de Lula relacionadas à Lava Jato, tornando o ex-presidente elegível. Para Fachin, a 13a Vara Federal de Curitiba não tinha competência para julgar casos do tríplex de Guarujá, do sítio de Atibaia e do Instituto Lula. Tirou o sono de Bolsonaro. 

Na segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021, Arthur Lira (Progressistas-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) são eleitos presidentes da Câmara e do Senado, respectivamente. A dupla vitória de Bolsonaro evidencia a fraqueza de um Rodrigo Maia (DEM-RJ) covarde e cansado. Tirou o sono dos mandachuvas.

Na segunda-feira, 11 de janeiro de 2021, a Ford anuncia o fechamento de suas três últimas fábricas no Brasil – em Taubaté (SP), Camaçari (BA) e Horizonte (CE), onde eram produzidos os jipes da Troller. Só na cidade paulista, 830 pessoas perdem o emprego. Em Horizonte, são 470 empregados. Tirou o sono de pais e mães de família.

Na segunda-feira, 18 de setembro de 2020, o número de mortos pelo covid-19 no mundo ultrapassa a marca de 1 milhão de pessoas. Tirou o sono do planeta. 

Na segunda-feira, 3 de agosto de 2020, o ministro do STF Edson Fachin revoga a decisão do presidente da corte, Dias Toffoli, que determinou o compartilhamento de dados da Operação Lava Jato com a Procuradoria Geral da República (PGR). A decisão é vista com algum ânimo pelos que se preocupavam com a desestruturação da força-tarefa. Tirou o sono dos magistrados. 

Na segunda-feira, 4 de maio de 2020, Bolsonaro nomeia e dá posse a Rolando de Souza no comando da Polícia Federal. O novo diretor-geral da PF é escolhido depois que o ministro do STF Alexandre de Moraes suspende a indicação de Alexandre Ramagem, amigo dos filhos do presidente, ao cargo. Rolando de Souza era subordinado de Ramagem na Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Tirou o sono do judiciário. 

Na segunda-feira, 18 de novembro de 2019, é divulgado que o desmatamento da Amazônia bate novo recorde e cresce 29,5% em 12 meses. Segundo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que precisou se acostumar a enfrentar constantes campanhas de descrédito por parte do bolsonarismo, haviam sido destruídos 9.762 quilômetros quadrados de floresta. Ricardo Salles, ministro do meio ambiente, atribui a devastação, como se o comovesse, à “economia ilegal”. Tirou o sono dos ambientalistas. 

Na segunda-feira, 21 de outubro de 2019, após se tornar líder da bancada do PSL na Câmara, Eduardo Bolsonaro destitui os 12 vice-líderes da legenda, expondo a já comentada crise vivida pelo partido. Tirou o sono dos garantidos. 

Na segunda-feira, 8 de abril de 2019, Bolsonaro demite Ricardo Vélez Rodríguez e nomeia Abraham Weintraub como ministro da educação, provando que pior que a incompetência estrangeira é a crueldade pátria. Tirou o sono de estudantes, pesquisadores e professores. 

Na segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019, Bolsonaro anuncia a exoneração de Gustavo Bebianno, a primeira das dezessete baixas que sua equipe de ministros sofreria até o fechamento desta edição. O afastamento de Bebianno, então ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, único nome do PSL no Palácio do Planalto, dá indícios da perigosa influência dos filhos do presidente e da mobilização das redes sociais nas decisões do governo. Bebianno morre pouco mais de um ano depois, no dia 14 de março, dois anos após o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Tirou o sono dos partidários.

Na segunda-feira, 29 de outubro de 2018, acordamos e Bolsonaro era presidente. Não que o que havia antes nos desse razões para sonos tranquilos, mas depois daquela segunda-feira, o Brasil aprendeu o que era insônia.

Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. Está no Instragam e Twitter.

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.