Bemdito

Das águas que passam e da lama que fica

O rompimento da barragem de Samarco a partir de dois filmes sobre o antes e o depois
POR Olivia B. de Avelar
Cena do filme "Das águas que passam", de Diego Zon

Começamos a décima terceira semana do clube do filme sob o céu sem lua. Sob a lua oculta. A lua anciã que se transforma, em cada um de seus treze ciclos anuais, em jovem e crescente. Em poucos dias, ela voltará a inchar no céu — noite após noite — até engordar inteira e cheia, refletindo, toda e alta, nas águas aqui embaixo. Perseguimos seu rastro, e, tão certo como o sol nasce, todos os dias, a lua vai minguar novamente: escorrendo e pingando, chorando em cima da maré morta. Até que, de novo e de nova, ela some do céu e puxa as águas pra cima, o ciclo de 28 dias do céu noturno, dançando sobre as nossas cabeças, enquanto dormimos acordados.

“Procurei captar uma experiência de espaço que está sempre ligada ao tempo. Tanto o tempo do lugar quanto o tempo das vidas das pessoas que vivem nele. Foi então que tive a motivação de desenvolver um filme sobre a relação de alguém com a água, tendo a figura de um pescador como elo de ligação a este mundo desconhecido.” E, assim, seguimos essas palavras e as lentes de Diego Zon — diretor de Das águas que passam — o curta metragem que se transformou em um documento histórico: foi filmado na linda vila de Regência, na cidade de Linhares (ES), local que, pouco tempo depois das gravações, foi um dos mais atingidos pelo rompimento da barragem da Samarco, tragédia ambiental que aconteceu em 2015 e que inundou o Rio Doce com rejeitos de minério. 

O motor do pequeno barco de pesca ressoa durante o filme e, sem perceber, comecei a respirar mais profundamente, tentando amenizar a minha ansiedade e diminuir as batidas aceleradas do meu coração. Já sabemos o que as águas contaminadas foram obrigadas a trazer para o mar de Regência. Já sabemos que vamos assistir, na sequência, à Rio Doce: Histórias de uma tragédia. A vontade que urge é a de colar nas retinas os movimentos de câmera que abrem meus olhos para um plano tão mais largo — e depois dessa praia, depois das magnas marés, depois de puro azul e aberto céu — ainda existe mais espaço aberto. Existem todos os pescadores que, ao longo dos anos e em todos os tempos, já tiraram dessas águas seu sustento e já criaram seus filhos e sustentaram suas famílias com seus pés na areia e seus olhos salgados no horizonte ondulante do mar. Porém, as águas dos rios correm, invariavelmente, para o mar. Elas passam independentemente da nossa vontade, mas antes constantes e perenes. As águas — incapazes de se defenderem — e nós, incapazes de pararmos o tempo, seguimos. 

O que a lama de rejeitos de minério fez foi arrastar a vida pelos cabelos. A correnteza de lama que rasgou as águas do nosso doce rio deu vazão àquilo que — para muitos — deveria ficar escondido: se a morte nos iguala é a vida que nos diferencia. É a vida de algumas pessoas que vale pouco porque elas não têm o que vale muito. É a vida que vale nada quando é feita de brinquedo nas mãos dos que decidem por nós e que serão, sempre, contra nós. Enquanto eu assistia, com muita indignação, ao segundo filme dessa semana e encarava o rastro de destruição deixado por esse desastre, reverberava na minha memória uma fala — entre as muitas falas hediondas — que foi tão repetida nos primeiros meses da pandemia de Covid19: só vai morrer velho. 

Só vai morrer velho: o velho cerrado, o velho raizeiro, o velho ronco das cachoeiras, o velho pé de Canela de Ema, o velho rio, o velho pescador, o velho ribeirinho, o velho indígena, o velho quilombola, o velho funcionário, o velho sem terra, o velho sem acesso pleno à saúde pública de qualidade, o velho sem aposentadoria, o velho vizinho, o velho parente, o velho amigo, o velho respeito, o velho bom senso.

Mas e a velha política, os velhos acordos inescrupulosos, o velho Brasil colônia e subserviente, os velhos golpes, os velhos militares? E esses? Ah! Esses não morrem nunca! Porque, assim como o próprio tempo, esse é o tipo de velho que se alimenta da morte certa e conveniente. Os velhos podres poderes que, como Caronte — o barqueiro do Inferno de Dante — se encarregam de levar as almas em troca das poucas moedas que lhe são jogadas. As velhas moedas duras e geladas que, sobre os olhos dos mortos, estampam, em suas duas faces: de um lado, a ganância e, do outro, a miséria. A velha miséria. Outra que, oportuna e tristemente, nunca é impelida a partir.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.