Das coisas que fazemos enquanto o mundo se acaba
Não importa o quão desorganizado esteja o lado de fora, há pequenas rotinas que precisam ser cumpridas, e é isso que nos salva
Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com
É a segunda vez, em poucos dias, que um tweet de Giovana Madalosso me captura.
“No epicentro do epicentro da catástrofe, ainda é preciso esquentar o forno e aguar as plantas. Os cachorros não sabem de nada”.
A ideia é poderosa: apesar do caos, permanecem nossos deveres de cuidado com as pequenas rotinas, afazeres e “miudezas” que precisam ser feitas em favor da fragilidade de seres, valores e relações que nos são muito importantes. É assim que temos tentado cuidar das nossas crianças, amores, plantas e cachorros: com aquele senso de responsabilidade amorosa e obstinada de continuar zelando por sua vida e bem-estar mesmo quando estamos esgotados e cheios de incertezas.
Isso porque o país deve sim admitir que vive uma situação de descontrole e desespero. Estamos (quase) perdidos, e uma avaliação honestamente realista não poderia ser mais desanimadora.
Como poderemos resistir a meses e meses em estado de instabilidade, incerteza e ameaça quanto ao futuro? O “fim do túnel” não está próximo, e o que há ao redor é um breu massacrante. Estamos no meio de uma crise profunda de saúde pública com externalidades graves em todas as dimensões da vida, e atravessamos isso tudo sem qualquer coordenação central, permanentemente sabotados pela ação e omissão daquele que deveria governar. As vacinas são escassas e não temos capacidade de construir pontes no mercado internacional, porque nossos negociadores são assombrados por demônios e teorias conspiratórias. Mais do que isso: parecem convencidos de que é melhor arder, padecer e morrer sem oxigênio do que abrir mão de uma cruzada ideológica em nome de valores fugidios. Do jeito como está, não há solução possível, e quem poderia interferir no processo de tomada de decisão tem permanecido omisso. Afinal, o que falta para que Rodrigo Pacheco, presidente do Senado Federal, dê seguimento à CPI da saúde que pode de algum modo pressionar o governo?
A vida miúda e pequena dos que morrem aos montes, a nossa vida, permanece. Há vasos de plantas na varanda com a terra ressequida e, no fim de tarde triste de um dia nublado, o gato da vizinha olha melancolicamente o movimento dos passarinhos e pombos no parapeito fora de alcance. Percebo que é preciso organizar gavetas remexidas e dobrar as camisetas desfeitas no canto do guarda-roupa. O interfone soou há pouco para avisar que uma encomenda foi deixada na portaria.
Na televisão juízes decidem grandes suspeições e tragédias compartilhadas, enquanto o cheiro do tempero do bife invade a sala. O almoço já, já, estará pronto. Nosso corpo vivencia dia após dia seus ciclos. Acordamos, dormimos, comemos, amamos, rimos (pouco, mas ainda rimos), temos desejos e fazemos planos de viagens mirabolantes. À noite, amamos abafados entre as notícias, contornando o chamado ao senso de dever cívico.
“Finalmente entendo o que ia dentro daquelas pessoas que bebiam, cantavam, amavam e trepavam, mesmo durante a guerra”.
Giovana novamente, certeira.
Volto ao primeiro tweet: afinal, apesar da catástrofe, as plantas precisam ser aguadas. E é bom que as tenhamos por perto reclamando um minuto de atenção que seja. Os jardins têm seus mistérios e ensinam muitas coisas. Paciência, zelo permanente, respeito a mudanças nem sempre previsíveis e, por que não reconhecer?, o testemunho da morte por excesso ou por falta.
Por isso, quando tudo parece muito desorganizado e a sensação de catástrofe insolúvel se avizinha, tem sido bom acompanhar o sono dos gatos e a indiferença das plantas, que desconhecem todos os nossos vícios e são incapazes de julgar o peso dos nossos maiores dramas.
Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.