Bemdito

Desenhos Cegos

A paixão entre a nitidez e a miopia
POR Raisa Christina

A paixão entre a nitidez e a miopia

Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com

Aos sete anos, comecei a usar óculos. Lembro-me de ter escolhido uma armação redonda, com rajadas de azul e cinza. Eu era magrinha e aquela estrutura já parecia pesar sobre o nariz, ao mesmo tempo que me suavizava a tensão da testa e das sobrancelhas quando os olhos tentavam focar um ponto qualquer ao longe. Eu me esforçava para ver quem se aproximava, mas precisava conter a ansiedade até que as distâncias se encurtassem e o outro enfim surgisse minimamente inteligível.

Os óculos me protegiam, eram uma espécie de película transparente e arranhada que se punha entre mim e os livros, entre mim e as paredes que eu riscava, clandestina, entre mim e as outras crianças da escola, entre mim e os monólitos espalhados pelo terreno do sertão. Aquele objeto de acetato e resina foi se embrenhando no corpo de tal maneira que era penoso me separar dele durante as aulas de educação física. Eu me sentia desamparada, correndo em meio aos colegas, súbitos borrões sem cara e nome.

De início desenhava, como todas as crianças, figuras que surgiam do contato bruto com o lápis, o papel e a tal chave dos processos de fabulação. Logo depois a miopia me desafiava a observar o entorno e tentar encontrar, com o desenho, algo além das formas indistintas sem profundidade que vagavam sob a luz. Não eram as paisagens, os bichos da caatinga, as vegetações, os objetos que tentavam me capturar, mas sempre as pessoas, seus corpos, rostos, bocas falantes. A elas meu desenho tem devotado toda atenção. 

Na adolescência, experimentava observar alguns rapazes. O olhar se derramava neles, tateando volumes do corpo, seguindo áreas do rosto sobre as quais a luz incidia e também apalpando aquelas pouco tomadas pelo sol. Foi assim que comecei a paquerar, um tanto resguardada por detrás dos óculos, entregando aos rapazes os retratos a lápis, feitos às pressas em pedaços destacados das folhas de caderno.

Não preciso dizer que a convivência com os óculos era pacífica, pois eles simplesmente me constituíam: eram o primeiro e o último objeto tocado por minhas mãos todos os dias, numa relação de sensualidade e sobrevivência. As lentes foram ficando cada vez mais grossas e a armação foi imprimindo uma marca constante que ia de um lado a outro do nariz, machucando a pele. 

Pouco antes dos trinta, decidi fazer a cirurgia de correção da miopia, que na época chegava aos nove graus. Cinco anos se passaram, e ainda me surpreendo. Durante a leitura, às vezes me pego empurrando com o indicador direito pela saliência do nariz como se ajustasse a armação que já não está mais ali. 

Foi estranho só ter compreendido, na ausência dos óculos, momentos que prescindem absolutamente de imagens. Nunca enxerguei com a nitidez de agora e certamente passei a me apaixonar de modo diferente. Hoje mal consigo abrir os olhos ao me deixar absorver pelas chamas do encontro amoroso, ao tocar o corpo alheio e engolir em bons goles peles, dedos, língua e membro. Nos instantes de êxtase da paixão, esqueço os estímulos visuais. Por que teria olhos quando estou fora de mim e que desenhos arderiam nas agudas ressonâncias e precipitações de um corpo cego?

Raisa Christina é artista visual e escritora. Está no Instagram.

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.

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