Entre o espelho e o fim do mundo
O que seu café da manhã e suas selfies fazem para salvar o planeta
Jáder Santana
jaderstn@gmail.com
No período mais crítico da II Guerra Mundial, cidadãos da Costa Leste americana aceitaram apagar as luzes ao cair da tarde. Não que corressem riscos diretos, mas a iluminação urbana facilitava a ação de submarinos alemães em busca de navios aliados saindo dos portos. Fazendeiros e industriais de diversos setores redesenharam seus processos produtivos para atender demandas crescentes por comida e armamentos. Isenções pessoais foram reduzidas, e o Congresso expandiu sua base tributária: se em 1940 apenas 10% dos trabalhadores pagavam impostos de renda federal, em 1944 esse número se aproximava de 100%.
Os conflitos aconteciam a milhares de quilômetros. Havia um oceano entre a paz e a guerra. Mas uma campanha de conscientização bem sucedida incutiu em cada indivíduo a ideia de responsabilidade pessoal e coletiva. Afinal, seria um sacrifício tão grande apagar as luzes em meio a uma guerra para salvar vidas e liberdades? Os aliados venceram por um conjunto de fatores que inclui estratégia, sorte, força bélica e impressionantes doses de resiliência cidadã.
Se, no Brasil de 2021, o Covid-19 fosse uma guerra, estaríamos próximos da derrota. Se apagar as luzes correspondesse a usar máscara, nossas grandes cidades poderiam ser vistas pelo mais capenga dos submarinos alemães. Se racionamento e isolamento social fossem sinônimos, nossos soldados morreriam de fome nas linhas inimigas. Em um ano de guerra já teríamos perdido 250 mil brasileiros. De acordo com o Boletim Especial do Exército de 2 de dezembro de 1946, 457 militares brasileiros morreram na II Guerra Mundial.
O escritor Jonathan Safran Foer, em seu livro Nós somos o clima (Rocco, 2020), defende que o segredo para capturar a atenção e a disposição sociais passa pelo campo do emocional. Em seu ensaio sobre mudança climática, diz que precisamos enxergar a terra como nossa casa “não de forma idiomática nem intelectual, mas de forma visceral”. Mas se nossas vísceras já se habituaram à cantilena diária do número de mortos nos noticiários, se aprendemos a encontrar conforto na devastação de nossa casa, ainda pode a emoção capitalizar responsabilidade?
E quanto dessa aparente indiferença passa pelo filtro da vaidade? Saber se nossa vaidade é resultado desse desprezo, ou se nosso desprezo é sintoma dessa vaidade, é importante para entender o panorama da crise sanitária e ambiental que vivemos. “Pode ser perigoso se sentir melhor quando as coisas não estão melhorando”, escreve Safran Foer em um dos capítulos mais interessantes do seu ensaio, quando analisa o papel das selfies na consolidação de um sentimento de sobrevalorização do pessoal em detrimento do coletivo.
A primeira fotografia de um humano, uma selfie de Robert Cornelius, foi feita em 1839 com uma lente de binóculo de teatro acoplada a uma caixa. Em meados de 2019 o Google divulgou que 93 milhões de selfies são feitas diariamente em seus dispositivos Android. Pesquisadores já identificaram uma condição relacionada ao impulso de tirar e publicar selfies: selfitis, ou selfite crônica. “Para salvar o planeta, precisamos do oposto da selfie“, diz Safran Foer, lançando ainda uma provocação – se uma junta de psicólogos tivesse arquitetado a mudança climática como a catástrofe perfeita para destruir nossa espécie, teria incluído nessa equação as redes sociais.
Falar mal das redes sociais é over. Abandonar Facebook, Instagram e Twitter saiu de moda. Subversão digital em 2021 é subverter a subversão. Se dois ou três anos atrás o caminho para a iluminação passava pelo botão “excluir conta”, a nova epifania consiste em colecionar lacrações de 280 caracteres. E aí voltamos ao que pode estar na gênese argumentativa do binômio vaidade-desprezo: as redes oferecem a sensação de que seu usuário está participando de algo sem que esteja de fato participando – assim como as selfies proporcionam a sensação de estar presente sem estar presente.
“Com demasiada frequência, a sensação de estar fazendo a diferença não corresponde à diferença feita – pior ainda, um senso de realização inflado pode acabar tirando o peso de ter de fazer o que realmente precisa ser feito”, explica o autor, reforçando a ideia de que estes são tempos de supremacia da performance social, do “veja só como estou fazendo uma coisa”. Infelizmente, o cálculo do performer não vai além do necessário para alimentar sua vaidade. Na vida real, no combate às causas e efeitos das crises concretas, o impacto de sua exibição é quase nulo. “Não temos problema algum em celebrar a história juntos, mas temos dificuldade de fazer parte de sua criação”, escreve.
É em nossa casa que menos percebemos as coisas com precisão. O lar é, afinal, o espaço familiar por excelência, o que nos protege das ameaças. Deixamos de sentir um cheiro incômodo ou abstraímos um ruído externo depois de um tempo. Essa espécie de adaptação sensorial tem caráter evolucionário: deixamos de gastar nossa energia com o que é seguro e conhecido para direcioná-la a novos estímulos que podem ou não ser perigosos.
Em seu último filme, lançado em 2020, o quase centenário naturalista britânico David Attenborough relaciona o crescimento do movimento ambientalista aos avanços da exploração espacial. Em Nós somos o clima, Safran Foer faz a mesma ligação. Foi The blue marble, a mais popular fotografia da Terra iluminada, capturada em 1972 pela tripulação do Apollo 17, que expôs a solidão e a fragilidade de nossa imensidão. E o que emocionou os astronautas e arrancou suas lágrimas, afinal, não foi a chegada à lua, mas a visão da Terra a partir do espaço.
O incipiente movimento ambientalista soube ler a obviedade da mensagem daquela fotografia. “O meio ambiente não é mais um ambiente, um conceito, um contexto, lá longe, fora de nós. Ele é tudo, e inclui a nós”, escreve Safran Foer. Em meados da década de 1990, quando começaram a aparecer marcas incontestáveis do caos ambiental que nosso estilo de vida gerava, a grande imprensa e os formadores de opinião decidiram que era hora de dedicar suas páginas e discursos à causa. Quase ao mesmo tempo, começam a surgir teorias da conspiração e argumentos negacionistas. Hoje, o debate em torno da crise ambiental – e suas consequências sanitárias, inclusive -, cruzou o derradeiro limite do raciocínio técnico e chegou ao campo do engodo. Os ambientalistas descobriram um inimigo quase tão mortal quanto o aquecimento global.
Mas este texto não se dedica aos conspiracionistas. Se você chegou até aqui, provavelmente deve estar ciente do abismo a que nos encaminhamos a passos largos. O problema ambiental deve estar entre suas preocupações, ainda que de forma inconsciente. Safran Foer escreveu que a melhor forma de se isentar de uma ideia difícil é fingir que só existem duas opções. São muitas as alternativas e estratégias de enfrentamento à crise ambiental, e todas elas são necessárias.
Explorar além da superfície a crise sanitária gerada em torno de um vírus é chegar ao escopo do problema ambiental. Como disse o autor em sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) do ano passado, “a Covid-19 é uma tragédia, mas não chega nem perto da tragédia ambiental da perda do planeta.” E falar sobre estratégias de resistência é ainda mais urgente quando estamos vivendo em um país governado por diretrizes de atrocidade. “Nem todo desmatamento tem a mesma relevância”, afirma em um breve capítulo dedicado ao Brasil de Bolsonaro.
O alardeado plano de desenvolvimento em áreas protegidas da Amazônia – termo falsamente sofisticado para “desmatamento” – faz parte de uma política de degradação ambiental que libera 13,2 gigatons de gás carbônico na atmosfera, o que é duas vezes mais alto que as emissões anuais dos Estados Unidos. Estados Unidos, aliás, que em 2018, sob o comando de Donald Trump, viram suas emissões de gás carbônico aumentarem em 3,4%.
Entre agosto de 2019 e julho de 2020, a área derrubada em nossa floresta foi a maior da última década. Perdemos 11.088 km² de mata. A pecuária é responsável por 91% desse histórico de agressões. Em apenas um ano, destruímos uma área 35 vezes maior que Fortaleza na Amazônia, um ecossistema que leva 4 mil anos para se regenerar. Por isso não se pode, em particular no Brasil de 2021, levantar o argumento ultrapassado de que colocar a crise climática na conta de indivíduos é algo ingênuo. As empresas produzem o que nós consumimos. Fazendeiros produzem o que nós comemos. O crime, como diz Safran Foer, está sendo cometido em nosso nome.
Nosso planeta tem em seu histórico cinco extinções em massa, e todas, menos a que dizimou os dinossauros, foram causadas por alterações climáticas. No mais letal desses eventos, conhecido como A Grande Agonia, atividades vulcânicas liberaram gás carbônico suficiente para aquecer os oceanos em 10 graus célsius. Como resultado, perdemos 96% da vida marinha e 70% da vida terrestre. Esse evento marca a fronteira entre as eras Paleozoica e Mesozoica.
Formulado pelo Nobel de Química Paul Crutzen, o termo “Antropoceno” descreve o período mais recente de nosso planeta, quando a atividade humana torna-se a influência dominante sobre a Terra. Embora haja imprecisão sobre sua data de início, costuma-se dizer que nasce com a Revolução Industrial no século XVIII. É a partir desse momento que nossa lógica de desenvolvimento passa a interferir significativamente no nosso clima e na dinâmica dos ecossistemas naturais. Foi o início de nossa derrocada.
Segundo Safran Foer, a atividade humana é responsável por 100% do aquecimento global que vem ocorrendo desde 1750. Caminhamos para a sexta extinção em massa, a primeira a ser causada por um animal, e não por um evento natural. Metas internacionais, como as estabelecidas pelo Acordo de Paris (2015) – manter o aquecimento abaixo de 2 graus célsius -, parecem ambiciosas, mas ainda representam pouco diante do cenário que se anuncia. Mais que isso, cientistas menos otimistas indicam que nossa chance de permanecer abaixo desse alvo é de apenas 5%.
Estimativas apontam que o uso de eletricidade é responsável por 25% das emissões anuais de gases de efeito estufa. A agricultura, principalmente o cultivo de pasto, fica com uma fatia de 24%. Em seguida aparecem manufatura (24%), transporte (14%) e prédios (6%). Para que consigamos cumprir as metas estipuladas no Acordo de Paris, todas essas emissões precisam cair para zero. Safran Foer reuniu dados e pesquisas para desenhar a melhor hipótese para o futuro na Terra. Caso haja um esforço global de cooperação, caso estejamos decididos a direcionar nossa individualidade em prol do coletivo, caso consigamos limitar o aquecimento aos 2 graus, este será o melhor cenário a que podemos esperar.
Na Groenlândia, o degelo será irreversível e entre 20 e 40% da Amazônia será destruída. Oceanos mais quentes vão destruir 99% dos recifes de coral, dizimando o ecossistema de 9 milhões de espécies. 60% de todas as espécies de plantas e metade das espécies animais serão extintas. As colheitas de trigo diminuirão em 12%; arroz em 6,4%; milho em 17,8% e soja em 6,2%. Estima-se que o PIB global per capita vá diminuir em 13%.
Dezenas de metrópoles como Daca (Bangladesh), Carachi (Paquistão) e Nova Iorque (EUA) ficarão inabitáveis em decorrência do aumento no nível dos mares, gerando um contingente de pelo menos 143 milhões de imigrantes climáticos. Conflitos armados terão um incremento estimado de 40%. O número de pessoas sujeitas à malária aumentará em muitas centenas de milhões e quatro milhões de pessoas sofrerão com a falta de água.
Recusada a falácia de que nada podemos fazer enquanto indivíduos e conhecedores do que nos espera, mesmo que por um milagre alcancemos as metas mínimas de aquecimento global, é hora de falar sobre o que nos cabe. “Salvar o planeta começa no café da manhã” é o subtítulo do livro de Safran Foer, vegetariano desde os dez anos. Boa parte de seus argumentos no livro gira em torno da ideia de que tomar consciência sobre a forma como nos alimentamos – e agir a partir dessa consciência – é o melhor que podemos fazer pela luta ambiental.
Em um mundo onde os 10% mais ricos da população são responsáveis pela metade das emissões de gás carbônico enquanto a metade mais pobre é responsável por 10%, parece nada radical propor, como faz Safran Foer, que limitemos o consumo de carne e derivados de animais a apenas uma refeição por dia. Esse meio caminho entre o consumo desenfreado e o veganismo pode ser, segundo ele, estratégia decisiva para que consigamos atingir as metas do acordo de Paris. Se nosso consumo de carne cai, cai também sua produção. O impacto na indústria produtora é direto e imediato.
Voltando à ideia de responsabilidade coletiva versus vaidade e individualismo, Safran Foer cita repetidas vezes o exemplo de Bangladesh, nação que tem uma das menores pegadas de carbono do mundo mas que está entre os países que mais sofrem as consequências do aquecimento. Em outras palavras, é um país com pouquíssima responsabilidade pelo estrago que mais o afeta. O bengalês médio, aponta o autor, é responsável por 0,29 toneladas métricas de emissões de CO2 por ano, enquanto o finlandês médio emite 38 vezes essa quantidade. Além disso, o país do sul asiático está entre os mais vegetarianos do mundo – cada cidadão consome cerca de 4 quilos de carne por ano. O cidadão finlandês consome a mesma quantidade de carne a cada 18 dias.
“Imagine que você nunca tenha tocado em um cigarro ao longo de sua vida, mas fosse obrigado a absorver os problemas de saúde de um fumante inveterado que mora do outro lado do planeta”, compara o autor. Trocando em miúdos, precisaríamos de um planeta do tamanho da Ásia para viver de forma sustentável se os 7,5 bilhões de pessoas da Terra tivessem os hábitos de consumo do bengalês médio. Por outro lado, se todo o mundo vivesse de acordo com os moldes norte-americanos, precisaríamos de pelo menos quatro planetas Terra. Retornando ao exemplo que abriu este texto, sobre norte-americanos que abriram mão de seu conforto imediato em prol da vitória na II Guerra, você acha que se Trump tivesse pedido que as pessoas ficassem em casa durante meses por causa do Covid em Bangladesh, isso teria acontecido? Ainda é possível imaginar esse salto de empatia?
Ingerir carnes e derivados animais em apenas uma refeição do dia não é das tarefas mais fáceis, não apenas porque o ocidental em geral, e o brasileiro em particular, é carnívoro e coloca a carne no centro de diferentes interações sociais, mas porque vai contra este zeitgeist que mede o sucesso pelo consumo. Nas notícias dos últimos meses sobre o agravamento da crise econômica no Brasil, um dado aparecia quase sempre: a diminuição do poder de compra de carne vermelha. Numa interseção nada rara entre alimento e economia, somos medidos pela quantidade de carne que comemos.
Embora haja uma tendência em nível global no sentido de reduzir ou cortar totalmente o consumo de carne, os números que revelam a dimensão de nosso apetite surpreendem. Enquanto no início dos anos 1960 eram produzidas 70 milhões de toneladas de carne no mundo, em 2017 esse número atingiu a marca de 330 milhões de toneladas. O aumento populacional explica parte dessa expansão, e o crescimento nos níveis de renda cobrem a outra parte. Quanto mais rica é a nação, mais carne é consumida. Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e Argentina aparecem no topo do ranking, com consumo superior a 100kg por pessoa.
Dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) apontam que não temos como atingir as metas do acordo de Paris se não conseguirmos levar adiante alterações drásticas em nossa dieta. Precisamos comer 90% menos carne e 60% menos leite e derivados para evitar o colapso irreversível do clima. No Brasil, se queremos interromper a destruição da Amazônia, precisamos interromper o fluxo de caixa dos produtores de carne. A salvação de nossa natureza passa por nossa boca.
Nos seus esforços por convencer o leitor a abrir mão da carne em pelo menos duas refeições diárias, Safran Foer salienta que é totalmente possível e desejável criar um número pequeno de animais de forma sensível às questões ambientais. “A agropecuária era assim antes de ser industrializada”, justifica. Apelar para noções de coletividade em tempos de individualismo exacerbado parece contraproducente. Para piorar, estamos embotados pela rotina de nossas próprias casas. Só percebemos o céu quando olhamos diretamente para ele. E os outros, os que poderiam nos contar suas histórias e testemunhos de horrores vividos – o bengalês que vem perdendo tudo nas enchentes – essas pessoas, os mais afetados, não têm como compartilhar suas narrativas e chacoalhar nossa consciência coletiva.
Talvez sirva de consolo pensar que, quando discutimos todos esses assuntos, não é da destruição do planeta que estamos falando. Pelo menos não numa análise que considere o longo prazo. A Terra vai sobreviver, apesar dos seres humanos. Vai sobreviver aos seres humanos. Não é que nós estejamos perdendo o planeta. O planeta está nos perdendo. Do que falamos quando falamos em crise, é da nossa própria extinção. A destruição da humanidade. Se isso não afeta nossa vaidade, nada mais poderá fazê-lo.
Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. Está no Instragam e Twitter.
Serviço
Nós somos o clima
Jonathan Safran Foer
288 páginas
Editora Rocco, 2020
Preço: R$29,90
David Attenborough e nosso planeta
Alastair Fothergill
1h23m
Disponível na Netflix