Bemdito

Escapando me encontro

O que a rotina nos diz sobre as microficções que criamos para ajudar a atravessar os dias
POR Alice Dote

O que a rotina nos diz sobre as microficções que criamos para ajudar a atravessar os dias

Alice Dote
alicedote@gmail.com

Já estamos na quinta semana. Todas as manhãs começam exatamente da mesma maneira: em algum minuto entre cinco e meia e seis e meia, desperto sem despertador. Parei de ativá-lo quando percebi que meu corpo tomou para si o serviço do alarme. Pontualíssimo, às vezes adiantado, meu corpo. Saio do banheiro já aguardando a cena: uma das cachorras já dorme com a cabeça sobre o meu travesseiro. O que se renova a cada dia é a posição assumida pelo longilíneo e flexível animal. No caminho para a cozinha, passo pela primeira janela e a abro. Com a garrafa de água na mão, espio se o chão da sala reflete um brilho molhado de xixi de cachorro — quase sempre sim, e quase sempre no mesmo lugar. Encho a garrafa no gelágua. O indicador e o médio pressionam novecentos e quarenta e cinco mililitros. A água passa da caneca de alumínio à garrafa, duas vezes e meia. Se o mediador é o copo americano, a operação repete-se umas cinco vezes. Engulo o primeiro manipulado do dia, o verde, entornando logo metade da garrafa. Na área de serviço, abro a segunda janela. Pego o pano cinza e sigo para a sala. O pano absorve o xixi, que secretamente torço para já ter sido absorvido, em parte, pelo piso de madeira. Tomo o pano entre as duas mãos e volto, agora a passos mais apressados para que gotas de xixi não escapem ao chão, à área de serviço novamente. Lavo-o até que a água que dele escorre passe dos tons amarelados ao transparente. Novamente à sala, pano novamente ao chão, agora com água. Novamente à área de serviço, pano novamente lavado. Estendo-o no parapeito da janela. Agora é a vez do pano em xadrez azul e branco. Em uma mão, o pano; na outra, um pote de plástico com água e desinfetante. Jogo o diluído no chão, seguindo a mancha molhada e, em seguida, mais uma vez o movimento do pano. Volto à área de serviço. Lavo o pano e o deixo secando no mesmo parapeito. Área-sala-área-sala-área-sala-área. Três passos de um processo automático. Ao estender o segundo pano, entro no lavabo, cuja porta está sempre aberta para a área de serviço, e lavo as mãos com Asseptol olhando-me no espelho. Tenho deixado a louça do jantar (e, às vezes, do almoço) para o dia seguinte. Detergente, esponja, rodinho de pia. Da cozinha, atravesso novamente a área em busca do Asseptol. Quarenta minutos, hoje calculei, nos primeiros gestos do dia. Encho a base da cafeteira italiana com água da torneira, pego o pote de pó de café na segunda bandeja do carrinho azul que fica na parede às minhas costas e uma colher no escorredor. De pouquinho, vou enchendo o recipiente com o pó, que sempre escapa um pouco para a bancada branca recém limpa. Cafeteira na boca esquerda, a da frente, do fogão. A maioria das manhãs me encontra decidida já no desjejum, não raro planejado na noite anterior. Abro a porta da geladeira sabendo o que procuro: goma na prateleira de cima, ovo na de baixo, queijo na gaveta de frios. Os gestos do preparo da primeira refeição do dia são conhecidos e confortáveis. Não há descompasso, não há imprecisão. Sento-me à mesa e, antes de comer, a imagem da comida bem arrumada no prato gera-me uma leva excitação. Nunca omito esses segundos do olhar prévio à primeira garfada. Bastante tempo levo à mesa. Menos decidida estou ao tentar levantar-me.

Eu fui de uma certa geração Cybershot quando nova. A câmera portátil era uma febre entre os adolescentes de classe média nos anos 2000. Fotolog, Festanet, Flogão e afins: todos eles, já finados, receberam meu cadastro. Loteio-os de fotografias: autorretratos (ainda não chamados selfies), registros com amigas no colégio, registros com amigas em casa, registros com amigas nos grandes encontros de sábado à tarde no shopping. Fotos de coisas, para nós que conhecemos as poses limitadas das antigas câmeras, eram mais raras. Eu e minha irmã passávamos horas em autônomas sessões de fotos em casa. Câmera apontada ao espelho, câmera no temporizador, em bancadas ou mesmo no chão, câmera apontada para o rosto. Curiosamente, era mais frequente que nos fotografássemos a nós mesma do que uma a outra. Depois, passávamos as fotos para o computador e passávamos horas a editá-las. Antes mesmo da época da Cybershot, quando eu era criança e mantinha um caderno pautado com desenhos de modelos de roupas livremente inspirados no que via em desenhos animados, minha mãe gastou um filme inteiro de poses em uma espécie de ensaio, com trocas de traje e cenários por mim planejados, pelos cantos do apartamento.

Uma manhã da primeira dessas cinco semanas. Mais uma que começou da mesma maneira. Xixi de cachorro, louça, café da manhã. O relógio não marcava nem sete horas. Já estava à mesma mesa do café da manhã, tentando começar a trabalhar. Levantei-me — mais decidida do que após o café. Vesti-me como se fosse óbvio que eu deveria fazer aquilo: eu estava sozinha em casa, e assim ficaria por mais dez dias. A quem temo constranger? Celular no tripé, disparo contínuo aos dez segundos anunciados pelo piscar de uma pequena luz. No espaço provisório ocupado pelo sofá, no dia anterior desacomodado do contato da primeira e única parede que conheceu nessa casa, incidia uma luz também desconhecida por ele. Aquela cena dificilmente se repetiria depois que eu arranjasse um novo lugar — distante de xixi de cachorro — para ele.

Sete e vinte. Trinta e oito disparos da câmera depois, pendurei a calça de lurex, retornei as botas prata ao saquinho branco onde cuidadosamente a mantenho, guardei os enormes óculos escuros. Coloquei o surrado blusão vermelho — a peça de roupa mais usada, por aqui, durante os dois diferentes momentos de lockdown — e fui trabalhar.

Por aquilo que chamamos coincidência, tenho notado a palavra escapismo repetir-se entre textos de sites considerados sérios e legendas de postagens no Instagram. Nessas, parece, implicitamente, tentar justificar as imagens que acompanha: “eu sei que não deveria estar fazendo (e postando) algo completamente desimportante para um mundo que vive uma pandemia, para um país castigado pelo seu presidente, para uma cidade com fome, mas, pelo menos, designo essas desimportâncias de escapismo”. Talvez minha impressão se deva à mania de justificar meus gostos e quereres.

Sozinha e em silêncio, eu e minhas imagens, nós, distraídas.

Um pouco de beleza: do colorido nos olhos ao prato de comida. Um pouco do que (me) enche os olhos. Um pouco de fantasia, um pouco de devaneio, um pouco de ficção. Parece-me que, ao tentar “escapar” — do que não sabemos nomear, de tudo, não raro de nós mesmos —, criamos microficções que não só nos ajudam a atravessar os dias, como são o que, de fato, nos constituem. Não, não é que eu queira me desconectar da realidade. Que ninguém se iluda ao pensar que tais ficções são menos reais que o real. Aliás, a separação entre realidade e ficção, ou, em outras palavras, entre realidade e imaginação, é mesmo possível?

No devaneio do escape, imagino(-me).

A fantasia breve e necessariamente desnecessária constitui uma de tantas dobras e redobras da realidade. Quando leio, escrevo, desenho, visto-me: nesses gestos e nas ficções que crio através deles, encontro-me. Sinto minha existência. Dentre meus lugares no mundo, está um domingo inteiro, das seis às seis, naquele insubstituível sossego do silêncio em palavras de desassossego. Leio para escapar em direção a mim mesma. Sinto-me. É uma leve, muito sutil, vibração sob a pele, que diz no maravilhamento da presença. É Gaston Bachelard quem fala desse maravilhar-se na sutileza da menor variação de uma imagem. Nesses devaneios e ficções, entramos em contato com um “não-eu meu”, como ele diz, ou que podemos entender como um “mais-um eu” que nos encanta, que “me permite viver minha confiança de estar no mundo”.

“Você está aqui”, minhas letras gravadas na pele asseguram-me. Nessas ficções, constituímo-nos como uma realidade. Assim como no desenho e na escrita, no vestir-me opero (com) a matéria do mundo e produzo imagens que também me expressam, ou melhor, me inventam. Escapando nas coisas solenes e belas (“minhas coisinhas”, como as tenho acolhido), tenho me encontrado. Percebo-me, me assumo e me imagino, e não preciso olhar para as letras em meu pulso.

Alice Dote é mestre em sociologia e artista visual. Está no Instagram.

Alice Dote

Pesquisadora e artista visual, é mestre em Sociologia e co-criadora do coletivo Narrativas Possíveis, com pesquisa e atuação em cidade, imagem e artes urbanas.