Bemdito

Mostrar-me ao cobrir-me

No exercício de estar na própria companhia, vestir-se e despir-se por um sem-número de horas é explorar a si, internamente, além do próprio corpo
POR Alice Dote
Danaë and the Shower of Gold (Adolf Ulrik Wertmüller)

No exercício de estar na própria companhia, vestir-se e despir-se por um sem-número de horas é explorar a si, internamente, além do próprio corpo

Alice Dote
alicedote@gmail.com

Naquela experiência inaugural de “ficar em casa”, passei muito tempo sem roupa, abandonando, na maior parte do tempo, qualquer tentativa de produzir efeitos de normalidade no cotidiano. São mínimas ou maiores as desestabilizações que percorrem essa porosidade dentro-fora da pele descoberta. Em alguns dias, havia tempo, havia inquietação, havia necessidade de fuga da escrita. Detinha-me frente ao espelho, pousando o olhar em cada bocado de pele por vez, obrigando-me a me olhar mais que fortuitamente. Noutros dias, me fotografava e me demorava, aproveitando os recursos de aproximação e detalhamento de imagem oferecidos pelo celular, naquela grande superfície corporal.

A câmera estava inclinada a um corpo nu, assim como o lápis e o papel. Muito me desenhei e, por imagens, me fiz desdobrar. Nelas, multipliquei-me. Imaginei-me outras. Desenho-me não para comigo me parecer, mas para me descobrir — tento, aos poucos, desautomatizar os movimentos do corpo, o olhar, a mão que me risca. Suprimo pedaços, outros implanto, como quer uma imagem do pensamento. Torno-me outra: não reconheço a fisionomia dessas linhas, mas ali me conheço um outro mais. “E se” nomeou um desses desenhos, mas tal título poderia ter se estendido a toda a série que de mim partia, mas em mim não se detinha.

Fazia tempo desde a última vez que a improdutividade chegou e se acomodou por aqui. A casa esqueceu-se dos riscos e lambes e tintas em suas paredes, dos poemas declamados por megafone de suas janelas, das panelas e tambores e gritos soando revolta para a vizinhança, do canto de ossanha que repetidamente ecoava em sua sala todo final de semana. Tem sido raro o disparo ao desenho, e ando indisciplinada demais para perseguir uma de minhas únicas metas de começo de ano: desenhar alguma coisa — uma coisa qualquer — no caderno diariamente. As primeiras páginas levam a cachorra dormindo, a cidade vista do quarto tornado escritório, algumas figuras femininas. Depois, as letras vão tomando conta, denunciando o retorno àquela espécie de urgência por aprender. Já havia me prometido declinar de qualquer novo compromisso que me coloque frente ao computador: um ano de incontáveis horas de telas transformou a inicial animação em apatia. Mais uma promessa quebrada. Canso das telas, mas não de sentir-me aluna.

Os cursos breves — alguns já realizados, outros a iniciar em breve, e alguns ainda aguardando minha desistência — espalham-se por uma miscelânea de assuntos: de saúde mental à moda, passando por escrita, filosofia, cidade, história da arte. Há até um sobre desenho. Os livros na lista de desejos compõem uma salada temática difícil de compreender. Caminhos tão diversos quanto meus interesses, que se confundem e me confundem constantemente. Angustio-me ao tentar dar conta deles: não é novo por aqui o lamento por não ser alguém que, desde criança, sabia que seria médica, advogada, arquiteta, veterinária, atriz, e perseguiu tal sonho, com constância e coerência, ano após ano. Minhas vontades flutuam e, se flutuo com elas, isso se deve ao privilégio de poder fazê-lo. Eu sei.

O apetite voraz por tudo o que me surge com o brilho sutil do novo ou do renovado deixa a se debaterem outros interesses que, não obstante meu momentâneo desinteresse, ainda me exigem. Anotações de prazos de chamadas para artigos científicos, reunidas na página doze do caderno, foram ignoradas. Penando por minha inconsistência, permanecem guardados o vidro de nanquim e o estojo de aquarela, os pastéis secos e os bicos de pena, os lápis de cor e os vidros de guache, os papéis e os pincéis. Salvos momentaneamente por algum trabalho pontual, logo voltam ao esquecimento do qual não consigo me esquecer. “São fases”: tento, sem sucesso, apaziguar-me comigo mesma.

A literatura, por enquanto, persiste como uma vontade inabalável — embora não tão estável seja o ritmo em que um livro segue o outro. Só garotos, de Patti Smith, foi uma das leituras das últimas semanas. Entre tantas qualidades pelas quais a obra podia me marcar, foi a singeleza com a qual Patti fala das coisas que lhe geram fascínio que se guardou em mim. Gosto como conta da procura por casacos iguais aos de Baudelaire ou pela blusa de gola rolê perfeita. E também como recorda o que vestia em cada um desses momentos decisivos ou banais, mas memoráveis, pelos quais narra a sua história (ou sua história com Robert Mapplethorpe, para quem, por sinal, “vestir-se era uma arte viva”, que compreendia “verdadeiras caças ao tesouro estéticas”). Enterneceu-me perceber o lugar que ocupam esses objetos — e o amor a eles — na vida desses artistas, mas sei que o que bulia aqui dentro, como uma pontinha de inquietação, era que Patti não pedia desculpas por dedicar às coisas um lugar digno em sua escrita.

Há alguns anos, fiz um ensaio nu. Essa não foi, para mim, uma grande questão. Vergonha ou coragem alguma em selfies e nudes. Mas, durante muito tempo, mostrar-me através do que eu produzia… Quanta insegurança, quanta justificativa, quantas desculpas. Textos como este me requerem muito mais esforço em deixar mostrar-me, seja através da escrita e do desenho, seja através do que cobre meu corpo. Curiosamente, se continuo despida e à vontade para passar de um cômodo a outro da casa, não raro é com embaraço que saio do quarto à sala vestida “demais”: com camadas de cores e texturas demais, com uma bota azul demais, com paetê demais para um domingo de manhã. Sempre fico na expectativa do silencioso olhar — para mim, sempre de estranhamento — do meu companheiro, que estará sentado à mesa ou deitado na rede da sala.

Assim vestida, sinto até mais despojamento do que me encobre. Há uns meses, minha mãe, sempre sutil em suas inquisições, perguntou-me por que eu estava vestindo roupas tão frouxas. Lembro exatamente o que usava: uma calça de linho marrom extremamente gasta e agora já um tanto folgada, uma camisa de botões masculina em um crepe de suave tonalidade rosa, e um blazer também cor de rosa, de manequim uns dois ou três números acima do que visto atualmente. O conjunto, remetendo a um repertório tido como masculino, realmente pouco deixava insinuar o corpo. Nenhuma curva, pouca pele. Entendo o que subjaz em sua pergunta. Talvez, passados alguns meses, ela tenha percebido que não ando a me cobrir para me esconder, mas para me enxergar, me experimentar, me desvelar.

É como se a vontade de me mostrar estivesse encontrando vazão, em meio ao risco da apatia que constantemente me ronda, na vontade de me cobrir.

Nas últimas semanas, um sábado após o outro, tenho passado um intervalo de tempo desmarcado no relógio — aquela breve hora ou metade, talvez, antes do almoço — frente ao espelho. A curiosidade pela minha imagem nua já não se insinua. Elejo uma e outra peça no armário e sigo num experimentar de cores, cortes e texturas. Calço sapatos, coloco brincos. Troco os elementos em multiplicadas montagens, quase como quem brinca com bonecas e roupinhas de papel. Depois, dobro, penduro, engaveto tudo novamente. Percebo, com algum constrangimento, o tempo gasto nesse fazer — grato por ser um não-compromisso não-anotado na agenda em que determino até os dias de lavar os cabelos — quando meu companheiro entra no quarto onde as roupas tomam a cama e eu me demoro, vestida apenas para me desvestir e me vestir novamente, frente ao espelho. Sinto-me boba em meu devaneio. “São fases”: repito a mim mesma.

Decerto, ando falhando em produzir. A prática do desenho mais se beneficiaria daquela atração ao nu. Tentando uma brecha nessa espiral de culpa, pergunto-me se não continuo a me explorar ao explorar meu corpo, mesmo que coberto. Mesmo sem produzir imagens, ou, talvez, produzindo-as apenas para meu prazer, nessa solitude que me faz esquecer as horas. Ainda um investimento de atenção em mim. Um outro exercício de minha companhia.

Alice Dote é mestre em sociologia e artista visual. Está no Instagram.

Alice Dote

Pesquisadora e artista visual, é mestre em Sociologia e co-criadora do coletivo Narrativas Possíveis, com pesquisa e atuação em cidade, imagem e artes urbanas.