Bemdito

As tranças, o cabelo, as mãos e a mãe

As habilidades e inabilidades manuais que nos conectam afetivamente no seio familiar
POR Alice Dote
Self Portrait with Braid (Frida Kahlo)

As habilidades e inabilidades manuais que nos conectam afetivamente no seio familiar

Alice Dote
alicedote@gmail.com

Os cabelos, que já esquecem o toque da lâmina da tesoura, vão reassumindo a forma que tomavam quase vinte anos atrás. Assim também, pescoço e mãos, que espicharam nos últimos tempos como espicham as extremidades de uma adolescente. Num domingo, me vi refletida na superfície preta e lustrosa de um carro, nos breves segundos antes de abrir a porta do veículo. No reflexo, me apareceu aquela menina de onze ou doze anos. Os fios castanhos, longos e de comprimento ondulado, partidos por uma risca frontal, evocam a maneira de usar os cabelos, todos os dias, ao ir para a sala de aula da 5ª série.

Início dos anos 2000. Haveria ainda uma longa viagem dessa cabeleira por cortes, cores e texturas, por longas franjas laterais e franjinhas na altura da testa, por fases de fartos coques no alto da cabeça e de juba cacheada avolumando-se à esquerda da risca lateral. Percebo que posso contar da minha vida ao recordar como usava o cabelo em cada uma dessas épocas, antes que ele voltasse ao natural do qual já nem recordava. Sem corte, o volume não se aquieta atrás das orelhas e, recusando-se a emoldurar o rosto, o invade. É como se o rosto, que afina, se tornasse pequeno demais para a massa castanha, que, já abundante, agora deu para sustentar uma nuvem de fios indomáveis a pairar sobre si. E três fios brancos, partindo da agora invariável risca frontal, igualmente indóceis. Eles já aparecem nas fotografias que faço de mim mesma: indiscutíveis sinais dos trinta que se aproximam na cabeleira daquela menina.

Partindo do lado esquerdo da risca, pendia uma trancinha fina. Depois do almoço, nos espalhamos nos sofás da sala de meus pais. “Deixa eu fazer uma trança em você”. A trança, daquelas feitas com mechas finíssimas, me lembra as que usávamos quando crianças e que, depois, fazíamos durante a aula, no colégio, tomando continuamente pequenas quantidades de fios de cabelo de trás das orelhas e da base do couro cabeludo e distraidamente as trançando. Da memória da ponta dos dedos: assim como dizem sobre andar de bicicleta, fazer tranças parece ser algo que, depois de aprendido, nunca mais se desaprende. Quando tento descrever o movimento feito pelas mãos, percebo ser difícil traduzi-lo em palavras: a dança quase automática dos dedos em garra, cada um sabendo quando vai por cima ou por baixo, qual mecha deve segurar agora e qual deve passar para o vizinho, é retida, como que por hábito ou por mágica, no acervo de gestos já tão nossos que não se arriscam a perder-se de nós.

Não lembro quando aprendi a fazer uma trança, mas esse talvez seja desses saberes manuais cujo primeiro contato se dá, quase sempre, na partilha entre as mulheres da família: assim como outras “manualidades” relegadas ao espaço privado, como o bordado, a costura, os reparos em linha e agulha. Começa nas mãos da mãe, da tia, da avó, a mexerem nossos cabelos. A nos fazerem cafuné. A nos pentearem. “Me ensina?” ou “deixa que eu faço”: frases como essas abrem uma fresta para a partilha de um saber-fazer que, como tantos dos relacionados ao corpo e ao adorno, tem lugar nos espaços de intimidade.

Devo dizer que nem eu, nem minha mãe, ostentamos grande talento a qualquer fazer com as mãos. Ainda assim — e talvez por isso —, o que requer habilidade nos dedos nos chega como atração e desafio. Penso, por exemplo, nos utensílios culinários e nos instrumentos musicais: dignamente tentamos, mas não exibimos muito jeito no seu manuseio. Violão, ambas tentamos aprender. Eu desisti após algumas aulas, mas minha mãe ainda teima em, ao passar pelo instrumento que repousa num canto de uma sala, trazê-lo ao peito e tocar algumas notas inventadas. Inventa-se também, por teimosia, na cozinha. Bolo fofo, ela sabe fazer muito bem e rápido, mas, às vezes, é preparado algo como um macarrão com morango que ninguém entende. Eu, eu sou capaz de cozinhar todas as minhas refeições — e gosto do que tenho aprendido a fazer —, mas nada garante a palatabilidade dos resultados: há bolos e bruacas que nem as cachorras arriscaram provar. Até meu pai, dia desses, se negou a engolir um pedaço de bolo de cacau que botou na boca. Ninguém precisa dizer nada.

Desses objetos e fazeres que requerem nossas mãos, a caixa de linhas e agulhas sempre existiu lá em casa. Talvez, sem que percebamos, nos inserem nessa milenar trama, de tessitura infindável, entre as mulheres e os fios, as linhas, os têxteis. Mesmo não sendo uma exímia costureira, a elas minha mãe recorre para salvar nossas peças de roupa: pequenos ajustes ou pequenos caprichos.

Pregou botões, fechou furos em blusas, abriu rasgos em jeans, deu pontos em decotes, abriu pontos de decotes, fez inúmeras pinças e desfez inúmeras pinças. Algumas vezes, de última hora, alinhavou barras de calças, saias ou vestidos compridos (assim como as desfez, quando essa era a tendência). Usamos pedra pomes para desgastar jeans, medimos certinho a altura do rasgo a ser cortado no joelho das calças, as transformamos em shorts. Camisetas tornadas croppeds foram muitas — suas mãos eram mais precisas no corte, mas, depois de um tempo, eu mesma passei a usar a tesoura (qualquer uma, daquelas de unha às de cozinha) para encurtar blusas em uma linha torta e cheia de rebarbas. Tornar uma peça outra, incrementá-las, customizá-las: nisso também ela me ajudou. Um cavado maiô vermelho ganhou ombreiras de fitas e fitas de lantejoulas também vermelhas a penderem pelos braços até os quadris. De vez em quando, ainda levo um vestido ou camisola cujas alças não aguentaram o movimento dos braços e tronco para que ela os torne novamente vestíveis. Combinamos que levarei, nos próximos dias, uma calça jeans para uma pinça que, garantiu-me ela, “isso? eu mesmo faço!”.

A caixa de costura é a mesma há muitos anos: retangular, baixa e transparente, acomodava bombons de chocolate. Caixas como essa — desconfio que não há casa em que inexistam tais caixas, vidros e potes reaproveitados — guardam esse saber-fazer cotidiano, e às vezes menosprezado, da transformação de algo em algo outro. Da habilidade de perceber as possibilidades do vir a ser daquilo que não precisa ser descartado. Na caixa, tudo parece morar em outro tempo: o plástico bege alaranjado dos pequenos tubos de linha é o mesmo da infância, e as agulhas neles enfiadas parecem estar para sempre ali. Os botões guardados podem ser vestígios de peças mais novas ou mais antigas, peças ainda existentes no guarda-roupa ou já idas. Há também aqueles que guardam o mistério da origem desconhecida. A caixa está sempre pronta, ainda que não visitada assiduamente. Está sempre ali — ali, em algum lugar entre as coisas de minha mãe —, e ali parece ser mais uma caixa de memórias.

Houve um tempo, quando eu e minha irmã éramos ainda crianças, em que fazíamos fuxicos de pano. Fazíamos muitos, um atrás do outro, com retalhos de chita. E ríamos de nossos fuxicos. Rimos também quando, uma noite, cheguei em casa com alguns pedaços alinhavados de algodãozinho cru: eram pilotos feitos durante a aula de modelagem tridimensional, uma disciplina do primeiro semestre da graduação em design de moda (que logo abandonei). Meu pai achava que eu, que também cursava arquitetura, agora queria “ser costureira”. Mas, se meu desempenho na disciplina de desenho de moda era até satisfatório, não posso dizer o mesmo do que exibia na de modelagem. Fita métrica, alfinetes, tesoura, pano, manequim: eu não entendia absolutamente nada do que se passava ali. Minha mãe riu da costura desastrosa no pedaço de algodãozinho, mas desconfio que ainda o guarde.

Ultimamente, tenho arriscado furar e atravessar com a linha papéis, desenhos, colagens, até folhas secas. Eu, como minha mãe, desafiamos nossas inabilidades e, vez ou outra, inventamos algo para ocupar as mãos — é como se fizéssemos não para aprender, mas crendo que já sabemos. Eu bordei uma frase numa blusa, para lhe dar de presente. Ela segura no peito a caligrafia quase infantil em linha vermelha.

“Segure aqui, vou pegar um durex”. Como isso — essa palavra, e depois a textura lisa da fita transparente envolvendo o fino feixe de cabelos — me fez relembrar o que andava adormecido em algum canto da minha memória e, não fosse o que estava vivo na dela, eu dificilmente lembraria. Minha mãe não usava elásticos de silicone, como uso hoje, para prender as trancinhas que fazia em nossos cabelos, mas durex. Foi com durex, também, que pregou um pingente de estrela, em plástico aparelho, no meu umbigo. Eu tinha oito anos e queria ter um piercing.

Há dias em que meus cabelos ocupam ainda mais espaço em volta do meu rosto. A semelhança no espelho com aquela menina repetidamente me impressiona. É que nem sempre, ao longo desses tantos anos, ela voltava na imagem refletida. Andava sumida. Hoje, percebo o que minha mãe dizia, há quase 20 anos: o pescoço longo, as mãos compridas, o cabelo farto demais para o rosto. Às vezes, fortuitamente, ela me pega os cabelos: como que por acidente do hábito, mas sei que há intenção. Conversamos sobre nossos cabelos: as cores, os cortes, os brancos.

Cortaremos nossos cabelos. Alef, que uma ou duas vezes por ano tem cuidado desse momento em que, apesar da sutileza do aparo das pontas, é sempre marcante, receberá uma seguida da outra. Sem a cabeleira invadindo o rosto, aquela menina permanecerá por aqui? Pedirei trancinhas com durex à minha mãe.

Alice Dote é mestre em sociologia e artista visual. Está no Instagram.

Alice Dote

Pesquisadora e artista visual, é mestre em Sociologia e co-criadora do coletivo Narrativas Possíveis, com pesquisa e atuação em cidade, imagem e artes urbanas.