Bemdito

Existe um deus no início, ou pelo menos no fim, de qualquer alegria

Cioran, De Niro, cristais e ar-condicionado em uma festa pré-covid
POR Luan Brito
Foto: Jr. Korpa

Na estreia da editoria de ficção do Bemdito, Luan Brito publica narrativa esfumada em um cenário de música, cinema e diálogos apáticos

Luan Brito
luanbritoda@gmail.com

Eu não amaldiçoei o dia do meu nascimento, mas todos os outros, em compensação. Existe nessa frase um senso de punição que, imagino, tem a ver com a perda da inocência; por mais rápida que seja — desde o primeiro dia, como estabelecido — passa a cobrar dali em diante o seu pedágio diário. Com efeito, ninguém se livra de pagar o pedágio alegando que não o conhece, não é assim que a coisa funciona, e este é o ponto delicado da frase, conhecê-lo é inútil quando o que é desejado é uma vida sem maldições autoinfligidas. Assim, se sentir bem não é exatamente o caminho do conhecimento. O que quero dizer é — é impossível desver, e logo a pimenta deixa de ser refresco, afinal. Eu não sou um hermeneuta, é claro, mas, penso que quando Cioran publicou em 1973 o Inconveniente de ter nascido, era sobre nós dois, sobre instantes assim que pensava.

Mais uma maldição. Ela sorri para mim, de onde parece ser o meio da festa, satisfeita por me divisar entre as pessoas, o cavalo sem cabeça do carrossel. As portas dos quartos foram trancadas. Na sala, somos Ela e eu, um cineasta, uma advogada de movimentos sociais, uma atriz não exatamente famosa por seu trabalho com dramaturgia e um par de músicos. Um deles ligou o celular a uma caixa de som. Há uma pretensão no ato, e eu a aprecio. Se você estiver atento, perceba por um segundo a ansiedade suspensa no ar ser aniquilada pelo grave de um teclado embalado pela reverberação de uma guitarra. Rock progressivo, talvez a trilha sonora de um filme cult, e a perspectiva muito deprimente da oportunidade perdida de testemunhar algo original, verossímil.

Ela sorri para mim, como se soubesse tudo o que estou pensando e decidisse ignorar. Estou bêbado, e suspiro, estico as pernas, me espreguiço. Estamos no meio de um triedro de música, álcool e fumaça de cigarros e maconha, somos mais sólidos do que tudo isso, não há onde me esconder; sobretudo, não há onde escondê-la de mim, eu a vejo. Na mesa de centro há a fração de um bolo de chocolate e um espelho com traços de cocaína e cartões de crédito, estranho aparelho de jantar. Os músicos dão uns amassos na advogada. A menos de cinco passos de distância, Ela fala com os outros membros do grupo. Não a ouço, mas conheço bem os seus gestos e expressões, sei como sua boca se move ao pronunciar todas as palavras de costume, é nisso que penso quando a vejo tirar o celular do bolso do jeans. Muito bem, eu ouvi a mesma história hoje cedo. No telefone, um vídeo da fita de audição de Robert De Niro para o papel de Sonny Corleone em O poderoso chefão. De Niro perdeu o papel para James Caan, mas voltou com tudo na sequência e, na pele de Vito Corleone, ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante. Ora, a atriz bate a mão esquerda na coxa, o cineasta ergue as sobrancelhas fazendo os óculos deslizarem sobre o nariz. —  Aí, está — diz Ela — O exemplo absoluto de uma audição memorável, de um ator que pertence totalmente ao universo da história em questão, mas não para aquele papel.

Porra. O que acontece? Eu me interesso — eu me interesso por essas coisas, e me sinto agora bem pouco parecido comigo, entende? como um animal feito de vidro e chiclete mascado, duas matérias que não compõem exatamente a mesma coisa, e que, é claro, se rivalizam. Neste instante, eu vivo a completa dúvida e, distraído, contemplo o pedágio com clareza, antes de ter conseguido desviar o olhar. Ela fala, e eu a vejo miraculosamente atingida pela esterilidade. É uma estranha. E aos poucos compreendo que a minha reação a isso, ao desejar que guarde o telefone no bolso e diga alguma coisa, outra coisa, seria como confiar a minha salvação a Ela, seria como lhe permitir que faça tudo o que for preciso para nos salvar, como uma santa, seria como vender minha alma a deus. Porra.

Mas Ela também me vê. Mais uma vez, não consigo lhe devolver o sorriso. Na minha mão o uísque bebe o gelo do copo, a consternação saboreia as nossas vidas. O cineasta mexe nos bolsos e tira um ziploc cheio de pequenos cristais brancos. Ela estende o braço em minha direção e me chama. Caminho até Ela e estamos agora lado a lado.

— Que livro era aquele? — Diz Ela

— Oi?

— Aquele livro que cê tava folheando, agora, lá na estante. Aliás, demorou, né? Tinha gente no banheiro?

— Demorei.

— E o livro?

— Ah, Cioran. Um livro do Emil Cioran. Escuta, cê não acha melhor a gente ir embora? Eu queria te falar —

Neste momento, sem qualquer espécie de aviso, o cineasta estende a mão em nossa direção. Apenas porque é esperado, lambemos sua palma com os cristais de MD, e instantaneamente a desordem do apartamento se torna menos desagradável. A atriz gargalha e sugere que deveríamos todos tirar a roupa, puxando a alça do vestido enquanto grava um story para, obviamente, seus close-friends; a Advogada faz com que os músicos se beijem de língua, a contragosto a princípio; seus rostos parecem brilhar através da reverberação espessa da guitarra e, por uns minutos minha localização é ignorada por mim.

— Sim, o Cioran. — Diz Ela, esfregando a mão no rosto e a deslizando pelos cabelos — Cê tava dizendo, cê disse que queria falar do Cioran, do livro.

Eu desisto de resolver o problema do jeito que o encarava. Sem filosofia alguma, deixo de lado o livro que acabara de folhear e mergulho em meu próprio ceticismo, um oceano vasto e particular; humano e bem perto de mim e longe do velho Emil, me levanto.

— Nossa, cigarro junto de ar-condicionado tem um cheiro azedo tão peculiar, né? — Diz Ela — Ai, desculpa, eu tô muito chapada. Fala.

— Não, não era do Cioran que eu queria falar. É do De Niro, eu acho. Sobre pertencer a uma história, mas não exatamente no papel em que — Eu suspiro.

— Olha lá, eles tão saindo. Vagou um dos quartos, cê não quer ir? Tá tão barulhento aqui.

Ela vai para o quarto. Eu a sigo. Ela torce a maçaneta e abre a porta, depois a fecha sem bater, às minhas costas.

— Não liga a luz — eu digo, e Ela obedece, caminhando para perto de mim. O gosto amargo em sua boca é mais uma maldição. Por entender isso, me sinto puro como um monge que acaba de apertar na coxa o cilício. 

Todos os dias, em compensação.

— Deixa escuro — eu digo. — Não tem mais nada que eu precise ver.

Luan Brito de Azevedo é designer e mestrando em Estudos da Tradução. Assina uma newsletter semanal.

Luan Brito

Escritor, mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.