Narciso em férias
Preso pela ditadura militar, em dezembro de 1968, Caetano Veloso foi privado, durante muitas semanas, de se olhar no espelho. Quando lemos, assistimos ou ouvimos relatos sobre os “anos de chumbo” do Brasil – período que se iniciou com o golpe de primeiro de abril de 1964 e que se manteve até 15 de março de 1985 – nos tornamos testemunhas de tantas e tamanhas atrocidades cometidas contra cidadãos brasileiros. Cada vez que entro em contato com alguma dessas histórias me sinto invadida por um misto de medo, revolta e esmagadora impotência. Durante o documentário, Caetano relata seus dias de torturas físicas, psicológicas e emocionais enquanto seu narciso, sem poder dependurar-se em seus olhos e sem conseguir repetir os ecos de suas próprias expressões faciais, retira-se em férias.
E o que acontece com cada um de nós quando Narciso se exila? Ficamos no escuro.
O documentário Narciso em Férias – Globoplay, 2020 – é um relato intimista, sincero, dolorido e histórico. Não há recursos cinematográficos, não há movimentos de câmera, não há, sequer, ar: são 84 minutos de claustrofobia sob um fundo cinza e ausência de perspectiva. Simbolicamente, o filme devolve Caetano Veloso à cela que ele ocupou quando tinha 26 anos de idade – porém, dessa vez, ele recebe um espelho: nós.
Quando Caetano encara a câmera nos olhos, funcionamos como seu mais profundo reflexo: nós, os brasileiros comuns, acuados e sem horizontes. Nós que não sabemos quem somos. Nós que quando nos olhamos no espelho nos vemos ricos, quando na verdade não admitimos moralmente que somos pobres. Que nos vemos brancos, quando não entendemos a colonização do nosso imaginário ao ponto de ficarmos cegos para a cor preta da nossa pele. Que nos vemos homens, quando assimilamos e repetimos a misoginia entranhada em nossas células sociais e aprendemos a odiar a mulher, até mesmo a mulher que somos.
A ditadura militar enviou de férias os narcisos de toda uma nação. Ela jogou sobre nossos olhos um capuz preto, peça reservada àqueles que caminham no breu para sua própria execução. Como uma tortura sem fim, ela continua pingando, lenta e enervantememte, dia após dia, geração após geração, as ideias e as imagens mais distorcidas, deturpadas e vis: “Guerra é Paz. Liberdade é Escravidão. Ignorância é Força.” A maioria das pessoas que encararam as celas sem espelho nos porões da ditadura militar brasileira está morta. Seus rostos, para sempre escondidos. Cada relato que ainda está ao nosso alcance é um milagre que vive, anda e respira.
Muitos de nós, em 2022, não passamos e não passaremos pelo o que passou Caetano Veloso, quando foi sequestrado de si mesmo pelo autoritarismo e pela truculência ignóbil do estado.
Mas há que se buscar Narciso em seu retiro: as celas simbólicas são muito maiores e nos encerram mesmo quando nos gabamos da liberdade. Revoltante e absurdamente, são os discursos recentes que exaltam a liberdade como um bem “mais valioso do que a nossa própria vida” que exalam o hálito úmido e podre das celas e das prisões arbitrárias, das execuções e dos corpos desaparecidos e encontrados nas valas clandestinas por todo o Brasil.
Enquanto não conseguirmos olhar para o povo que somos, enquanto não lutarmos para que nos dêem espelhos, enquanto não enfrentarmos a realidade que nos encara de volta seguiremos sendo um país/porão, que não reconhece o próprio rosto e que, aos poucos, esquece de cuidar de si – gargalhando enquanto apanha, apoiando a tortura dos que são nossos iguais, repetindo, aos gritos, as palavras de ordem proferidas por nossos próprios carrascos e dançando ao som do hino nacional que toca às vésperas da nossa própria execução.
Autoritarismos nos privam de espelhos que nos mostram quem verdadeiramente somos e nos obrigam a amar qualquer imagem brutal que colocam nesse lugar. Uma imagem desumana – é isso que aprendemos a amar, quando narciso sai de férias e nos deixa entregues ao ódio por nós mesmos que uma ditadura nos impõe. Precisamos de espelhos. Precisamos olhar para o nosso próprio rosto. Precisamos de lembrar para não esquecer quem somos.