Nunca é demais lembrar: o Brasil é maior que São Paulo
No século XIX, quando o Rio de Janeiro basicamente se resumia ao vai-e-vem da Rua do Ouvidor, o teatro brasileiro era nada mais nada menos que o teatro da corte. No século XX, os artistas (e o dinheiro, sempre ele) de São Paulo espicham um tanto mais a fronteira da chamada cena nacional.
Chegamos ao século XXI já faz um tempo, e seguimos, no teatro e em outras tantas áreas, sem abarcar o tamanho real e simbólico do nosso país. O documentário Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina, que estreou no último festival É Tudo Verdade em abril e desde então tem cumprido o circuito dos festivais, é mais um belo (e triste) exemplo dessa nossa cegueira.
O paulista Joaquim Castro e o carioca Lucas Weglinski olham a trajetória do Teatro Oficina, grupo fundado em 1958, completamente presos a São Paulo. Uma pena. O documentário, desenvolvido ao longo de quatro anos, premiado logo na estreia, é, sim, o resultado de um excelente trabalho de pesquisa.
Há camadas e camadas das seis longas décadas de atuação e de militância da companhia sendo, carinhosamente, revistas, numa excelente montagem de áudio e vídeo. O problema é que todo esse esforço de investigação e revisão de acervos não consegue romper uma fronteira que o Oficina aboliu quase ao mesmo tempo em que despedaçou de vez a quarta parede.
De Norte a Sul do país, ali na travessia dos anos de 1950 para os de 1960, havia um desejo enorme de falar à nação, por mais imaginário e abstrato que isso possa parecer. Quando surge, ainda meio engomadinho na tradicionalíssima Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o Oficina, talvez, até pudesse querer fugir de pretensões nacionalistas, sobretudo se comparado ao Teatro de Arena, de 1953, mas, com o tempo, foi se lambuzando de Brasil como quem chupa uma manga madura.
Com isso, é, no mínimo, reducionista falar do grupo liderado pelo genial José Celso Martinez Corrêa, hoje com 84 anos, apenas a partir da Rua Jaceguai, número 520, bairro do Bixiga, São Paulo capital. O quintal do Oficina, como o de Manoel de Barros, é maior do que o mundo.
Insisto: Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina é um filme lindo, visualmente muito interessante, poderoso e precisa ser visto. A colagem de imagens do acervo do grupo é extraordinária, tem cenas maravilhosas do nosso José Wilker, recém-chegado por aquelas bandas, além de um emaranhado de discursos que se associam para rediscutir e, em parte, desconstruir bases, até aqui, aparentemente muito sólidas sobre a história da companhia.
O documentário, por exemplo, vai apresentar uma leitura do Oficina como um grupo de mulheres. Sim, de mulheres. Ítala Nandi e Etty Fraser, lá no início, e Camila Mota, na retomada dos anos 1990, são investidas de um poder e uma função absolutamente disruptivos. Palmas para elas!
O que embaça o longa-metragem é São Paulo. Quanto mais a narrativa do documentário se prende a um localismo excessivo, questões urbanas de São Paulo, questões políticas de São Paulo, mais distante vai ficando do Brasil. É óbvio que não há como reivindicar uma ruptura com o berço da companhia, nem isso faria nenhum sentido, mas há pouco esforço de Joaquim Castro e Lucas Weglinski para flagrar o Oficina para além de suas fronteiras físicas. O dilatar do Teatro Oficina de São Paulo para o Brasil e para o mundo passa batido ou fica num lugar coadjuvante no filme. É incômodo esse silêncio num lugar em que a ação do grupo é estridente.
Teatro Oficina na estrada
Em plena ditadura, aquela deflagrada em 1964, já com o nefasto AI-5 em vigor, há que se registrar, o Teatro Oficina pôs sua cena na estrada. Na rota da emblemática Viagem de Utopia dos Trópicos, que, em dez meses consecutivos, ligou o Rio de Janeiro a Manaus, o grupo percorreu o interior do Brasil. Na bagagem, o Oficina carregava: Pequenos Burgueses, de 1963, O Rei da Vela, de 1967, e Galileu Galilei, de 1968. Gorki, Oswald e Brecht comeram muita poeira.
Não era propriamente uma turnê, muito menos um projeto de circulação de espetáculos, era mais um movimento de busca, de encontro, de descoberta. No Ceará, além de Fortaleza, a companhia passou pelo Crato e por Juazeiro do Norte. Não é que o Oficina conhece primeiro a terra do Padre Cícero que a do Beato Antônio Conselheiro!
Os desdobramentos desse caminhar foram aparecendo aos poucos, aqui e alhures, a partir dos anos seguintes, nas roupas, nos costumes, nas comunidades alternativas, nos grupos de teatro independentes que passaram a pipocar Brasil adentro, nas atitudes contestatórias, na insubmissão mais completa, enfim.
Esse episódio, central para a história do Oficina e para a história do teatro no Brasil, não aparece em Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina. Como também não aparece boa parte das errâncias mais recentes da companhia, como a que levou quatro dos cinco fragmentos de Os Sertões para o Festival de Recklinghausen, na Alemanha, em 2004, e trouxe a íntegra da montagem de mais de 30 horas para Quixeramobim e daqui seguiu para Canudos, no interior da Bahia, em 2007. A sorte é que o filme, embora não dê conta de todos os passados do grupo, tem como foco uma explosão de presentes e de futuros.
O Oficina está vivo, atual e atuante. O documentário dos 70 anos, certamente, será melhor! Evoé!