O apito de cachorro do assessor do presidente
O nada sutil dog whistle do assessor da presidência revela um experimento de vulgarização da violência e deterioração da democracia
Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com
O Brasil é um país que surpreende pela capacidade de gerar crises desnecessárias. Durante a semana, o chanceler Ernesto Araújo foi ao Senado Federal prestar contas de sua incompetência. Levou a tiracolo Filipe Martins, o imberbe assessor para assuntos internacionais de Jair Bolsonaro.
Martins ficou conhecido pela proximidade ideológica com Olavo de Carvalho. Sua predisposição à polêmica é estudada: assim como Carlos Bolsonaro, Filipe Martins provoca confusões com a clara intenção de testar o efeito que a performance do discurso de ódio tem sobre o ambiente político. A técnica já não surpreende e consiste em criar polêmicas artificiais para insuflar o nervosismo da mídia e da institucionalidade política.
Não é só uma molecagem, é um projeto de comunicação que tem demandado do país energia além do tolerável. O mais recente experimento se deu durante a fala de Rodrigo Pacheco: Filipe Martins fez um gesto de “ok” invertido com os dedos. Presidente do Senado Federal, Pacheco é um parlamentar elegante, a cortesia explicada pelo talento político aliado a anos de experiência oficial. O gesto evidente de Martins, postado logo atrás do senador, não passaria despercebido. Não demorou muito até que o primeiro parlamentar a ver a cena subisse o tom contra o desrespeito do assessor.
Inicialmente lido como uma obscenidade infantil, o símbolo foi depois reinterpretado. O ok invertido, na verdade, significaria white power, e serviria para Filipe Martins expressar um dog whistle para outros participantes de grupos racistas, supremacistas brancos com os quais se identifica.
Dog whistle é como se tem chamado uma das táticas disseminadas entre grupos da alt-right norte-americana. Em tradução livre, significa “apito de cachorro” e consiste na apropriação de palavras, expressões ou símbolos de uso comum para ressignificá-los no contexto restrito da comunidade, criando um sentido que só é compartilhado pelo grupo. A função é estabelecer reconhecimento. É assim que um gesto de ok, um gesto que todos nós poderíamos fazer para assentir, pode ser empregado para que alguém manifeste de forma silenciosa a irmandade no ódio com um interlocutor que reconhece como pertencente à sua tribo. De um supremacista para o outro: estamos aqui, temos o mesmo alvo.
O gesto de Martins, de tão estrondoso, foi tudo menos um dog whistle. Se o fosse, aconteceria na sutileza da polifonia da comunicação, não geraria a revolta que gerou. O assessor usou de forma consciente um gesto que sabia ser suficientemente conhecido para provocar aquilo que, além de códigos secretos, os extremistas radicais também sabem fazer bem: aviltar os espaços oficiais. Foi uma provocação: estou aqui e posso ser racista enquanto fala o presidente do Senado Federal.
Rodrigo Pacheco manteve-se coerente com seu estilo protocolar. Deveria ter sido mais enfático e exigido do Executivo a cabeça de Filipe Martins. Nada de prisões, senhor leitor! A guilhotina mais eficiente para um incendiário como Martins é a condenação ao ostracismo. O reconhecimento de sua irrelevância. Que fosse o assessor exonerado sem demora e atirado à insignificância em que sempre deveria ter permanecido.
Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.