Bemdito

O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago

A redistribuição das tarefas de cuidado é uma pauta urgente em um mundo que sobrecarrega as mulheres
POR Geórgia Oliveira
Foto: f1uffster (Jeanie)/Flickr

A redistribuição das tarefas de cuidado é uma pauta urgente em um mundo que sobrecarrega as mulheres

Geórgia Oliveira Araújo
georgia.araujo17@gmail.com

Na semana passada, escrevi aqui sobre os retrocessos que a pandemia trouxe para a luta das mulheres por igualdade de gênero, principalmente na esfera econômica e no âmbito do trabalho. Um dos pontos principais dessa reflexão é a carga exaustiva de tarefas domésticas pouco ou não remuneradas e o trabalho de cuidado que são necessários para a manutenção da vida. Não sei vocês, leitoras que acompanham esse texto do outro lado da tela, mas eu perdi a conta de quantas horas no último ano dediquei a tarefas domésticas e de cuidado. E sou uma mulher solteira, sem filhos, que mora com os pais. Conversando com outras amigas, muitas delas que acumulam também em suas funções de cuidado a maternidade, a exaustão se torna um sentimento unânime. O fato é que estamos muito sobrecarregadas.

A desigualdade na distribuição dos trabalhos de cuidado é um tema importantíssimo no movimento feminista e ganha destaque na obra da autora cuja frase dá título a esse artigo: Silvia Federici. Ela e outras mulheres que se dedicaram a uma leitura feminista do sistema capitalista identificaram a importância vital essa faceta do trabalho a qual o velho Marx não deu tanta importância: o cuidado e os afazeres que permitem que todos nós tenhamos roupas limpas e comida feita e que conserva a higidez de crianças e demais pessoas que precisam de cuidados para viver e se desenvolver. N’O Capital, esse trabalho é descrito como “reprodutivo”, que se diferencia do trabalho chamado “produtivo” porque não gera riqueza, serve “apenas” à perpetuação e à manutenção da vida.

Dados do relatório Tempo de Cuidar, da OXFAM Brasil, expõe que mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam em conjunto 12,5 bilhões de horas todos os dias ao trabalho de cuidado não remunerado. Todo esse volume de trabalho gera uma riqueza de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global, que representa mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo, mas que não é levado em consideração no cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) dos países. O trabalho doméstico não remunerado é visto com naturalidade como uma tarefa feminina, feita com amor e afeto, na qual o papel dos homens é “ajudar” quando requisitado, ou nem isso. Toda a carga de trabalho físico e mental de ordenar a existência de várias pessoas, muitas delas adultas e completamente funcionais, é deixada para nós, mulheres. E assim a divisão sexual do trabalho permanece intacta, muito bem revelada nos diferentes stories de home office que vemos no Instagram de mães e pais.

Mas essa temática não se resume ao arranjo familiar cisheterossexual branco e de classe média, porque outros fatores tornam a divisão do trabalho ainda mais desigual. No Brasil, 7,4% das famílias com crianças de até 14 anos são chefiadas por mulheres, sem a presença de outro cônjuge ou responsável, o que onera ainda mais a responsabilidade sobre as atividades de cuidado. Além disso, o trabalho doméstico ganha outra dimensão quando pensamos no contingente populacional, formado majoritariamente por mulheres negras e periféricas, que exercem a profissão de empregadas domésticas e diaristas, quase sempre de maneira informal e sem valorização profissional alguma. Durante a pandemia, essas trabalhadoras foram ainda mais afetadas, tanto pelo desemprego e pela maior exposição à vulnerabilidade social, quanto pelo total cerceamento da sua liberdade em nome da “proteção” dos patrões contra o coronavírus, em situações de trabalho análogo à escravidão em ambiente doméstico que se multiplicaram.

A delegação das tarefas domésticas e de cuidado de outras famílias a essas mulheres aumenta ainda mais a desigualdade entre homens brancos e mulheres negras, além de aumentar as desigualdades intragênero, a partir de uma divisão racial do trabalho que “instaura papeis e funções diferenciadas no interior do grupo feminino”, como bem definiu Sueli Carneiro já em 1985 no importantíssimo artigo Mulher Negra, em Escritos de uma vida. Desta forma, ações de publicização do trabalho de cuidado, como a oferta de vagas em creches e escolas e de outros serviços públicos destinados a atender sujeitos que precisam de assistência, continuam extremamente necessárias. Mas é preciso também discutir a redistribuição dessas atividades: se elas são essenciais para a manutenção e perpetuação da vida de todas as pessoas, nada mais justo que todos se ocupem dela de forma ativa.

Toda essa reflexão foi motivada por uma foto que vi no Twitter essa semana e que pode ser acessada aqui. Ela foi tirada em fevereiro de 1970, durante a Conferência Nacional para a Emancipação Feminina (National Women’s Liberation Conference), na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Nela, o teórico cultural e sociólogo jamaicano Stuart Hall está com uma criança adormecida nos braços, trabalhando na creche que oferecia cuidado aos filhos e filhas das mulheres que participavam da conferência. Sua presença aqui não serve para louvar os homens que exercem tarefas de cuidado em igual proporção com as mulheres, ou mesmo para servir de exemplo (o que o próprio Hall reprovaria). Serve para lembrar que o trabalho de cuidado é algo comum a todes e que a emancipação também passa por uma ressignificação do cuidado.

Geórgia Oliveira Araújo é colaboradora do Bemdito e pesquisadora na área de violência de gênero. Está no Instagram.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.