O som d’Os Pássaros
O cinema é uma produção audiovisual, portanto tanto a manipulação criativa das imagens quanto a manipulação criativa dos sons, são fundamentais para termos uma obra que seja realmente poderosa em suas pretensões artísticas e comunicativas. Sons e imagens são intrinsecamente ligados, um prevê a existência do outro, ou pelo menos é o que o cinema nos faz acreditar há pelo menos 84 anos.
O poder de evocar do cinema é tão grande, que foi motivo de estudo e de trabalho radicalmente experimental no cinema clássico estadunidense. John Ford acreditava no extracampo, naquilo que, de maneira fantasmática, persistia, não na retina, mas na memória. Hitchcock, por outro lado, entende que o cinema pode mais, pode submergir no explícito sem o ser realmente.
Em Os Pássaros, encontra seu pragmatismo metafísico em estado puro, quintessente. Para isso, foi essencial um trabalho árduo, sem precedentes, de experimentação sonora, tanto no nível técnico quanto na utilização desse som narrativa e poeticamente dentro do filme.
A começar pelo título, já percebemos que Os Pássaros seguirá o mesmo caminho que Hitchcock vinha traçando desde o início dos anos 1950, sendo tomado definitivamente com Janela Indiscreta, passando por Um corpo que cai seguindo até Psicose. A questão do olhar e da imagem que esconde, impura, pois se existe significa que há uma razão para tal, ou seja, que há alguém que olha aquela imagem, que a configura a partir de suas pretensões (Janela e Vertigo são prodigiosos nesse sentido) ou de suas pulsões (Psicose). Em Os Pássaros, Hitchcock planeja uma tomada beirando o abstracionismo, para isso precisará de algo bem menos material que a imagem. Aqui, ele utilizará o som de uma maneira a economizar a imagem, reduzi-la ao essencial mais ínfimo e rigoroso.
Voltando ao título, o que vemos nele não é mais do que uma representação minimalista de pássaros voando, todos se assemelhando, sem detalhes algum, apenas formas pretas num fundo cinza. Porém, o som é extensivamente detalhado. Ganidos dos pássaros, bater de bicos e asas, formam quase uma sinfonia cacofônica, já mostrando o que se seguirá até o final, onde o único som organizado de maneira melódica (ou quase o único, mas voltarei a isso mais tarde) é justamente o som dos pássaros, já que o filme não contém nenhuma peça musical feita para ele e, excetuando um breve momento, nenhuma música de qualquer tipo, seja diegética ou não. O que seria, para um cineasta como Rossellini, um tour-de-force realista, para Hitchcock torna-se inegavelmente a mais pura das abstrações.
Para isso, contou com as novidades técnicas surgidas naquele momento, trabalhou com sons feitos no computador, misturando-os aos sons reais de pássaros. A soma desses efeitos causa uma sensação tão forte que modificou para sempre o modo como pensamos ouvir os pássaros.
Apesar de a maioria das pessoas nunca sequer ter sido atacada por pássaros e ter como única experiência sonora aviária o som constante das pombas ou dos passarinhos, o som ouvido no filme tornou-se o som da realidade, apesar de muito dele ter sido composto de maneira completamente artificial.
Dentro do filme, temos sete ataques de pássaros. Sem nenhuma explicação narrativa, eles só tomam forma a partir da materialização das imagens e dos sons. Agora falarei de cada um deles.
O primeiro acontece quando Melanie (Tippi Hedren) volta de barco da casa de Mitch (Rod Taylor), e um dos pássaros a ataca ferindo a sua testa. O som que ouvimos é principalmente o som do motor do barco, com o som ambiente (do rio, do vilarejo de Bodega Bay) bem suave, quase imperceptível.
Aqui, é interessante ressaltar como Melanie é associada ao som de motores, máquinas que combinam com a sua personalidade fria. Quando a vemos na estrada e quando entra no vilarejo, é gritante o ruído do motor de seu carro. Quando está chegando no pequeno porto, somos tomados de surpresa por um pássaro que, som e imagem juntos, dá um rasante para atacá-la, cortando não só o plano e a testa de Melanie, como também o ruído constante do motor do barco. De agora em diante, o som dos pássaros será um indicativo certeiro de um ataque. As imagens agirão principalmente como atores do suspense.
O segundo ataque é o da festa de aniversário da irmã menor de Mitch, Cathy (Veronica Cartwright). O ataque começa da mesma maneira que o segundo, com um pássaro rasgando o céu, em imagem e som. Mas diferentemente do outros, este é bem mais violento, com vários animais. O granido agora se mistura com os gritos das crianças, tornando-se quase impossível diferenciá-los.
A orquestração da cena é magnífica, os pássaros voam, ouve-se o bater das asas, alguns espocam balões de festa, tudo composto de maneira musical. As imagens podem ser economizadas, Hitchcock só pontua os momentos de maior tensão, dos pássaros bicando as crianças. É um ataque ainda desorganizado e, apesar de apresentar um caráter surpreendente, ainda não constitui o real perigo que virá a seguir.
Após o ataque no aniversário de Cathy, Melanie decide ficar para jantar na casa de Mitch, que é embalado pelos sons dos lovebirds, presente de aniversário seu para a menina. Diferentemente dos dois primeiros ataques, este é acionado pelo olhar de Melanie. Quando estão sentados tomando café, um plano de Melanie mostra-a olhando assustada para o chão, o contraplano mostra um passarinho perto da lareira, silencioso, outro plano de Melanie e ela fala “Mitch”.
O próximo mostra uma enxurrada de pássaros saindo da lareira com o som ao máximo. Esse é o momento em que o som e as imagens mais condizem entre si, pois não é só o som que é tomado pelos pássaros, mas o campo também é.
Na manhã seguinte, quando a mãe de Mitch, Lydia (Jessica Tandy), vai visitar um amigo, o som é concedido com um papel fundamental para a cena. O silencio impera, apenas os gestos de Lydia são escutados no momento em que ela entra na casa. As xícaras quebradas são indícios que os pássaros também estiveram ali. No quarto, a destruição é completa, um pássaro está preso na janela, vidro por tudo quanto é lado. Ela vê pernas no chão, corpo escondido pela porta.
O movimento de câmera revela o amigo de Lydia sem os olhos, três planos em rápidos cortes axiais aproximam a sua imagem. Lydia não grita, silêncio, ela corre. A boca aberta em desespero, o grito engasgado. Entra em sua camionete, liga-a, e o som do seu motor é o único som que ouvimos, é seu único grito.
O quarto ataque acontece na escola de Cathy. Nessa cena, ouvimos a única música do filme, cantada pelas crianças. Ela é ouvida do lado de fora da escola, enquanto Melanie se senta num banco e fuma um cigarro. Vemos pássaros se agrupando silenciosamente em um brinquedo atrás de Melanie.
O índice visual de um ataque é a causa do suspense. O som é “visível” demais para a sutileza que a cena pede. Melanie percebe um pássaro voando, um ponto quase ínfimo no céu. Ela segue-o com seu olhar até vê-lo pousar no brinquedo e ser surpreendida por um plano praticamente tomado por pássaros.
As crianças ainda cantam. A crueza e o suspense concebidos a partir dessa composição som/imagem é quase insuportável. Avisada por Melanie do perigo que correm, a professora Annie (Suzanne Pleschette) pede para as crianças saírem como se fosse em um firedrill, de maneira calma e quieta. Não adianta em nada e os pássaros atacam as crianças numa cena que é, de certa forma, uma turbinada do segundo ataque.
Após o ataque da escola, Melanie vai a uma lanchonete. Ela participa de início apenas como espectadora. Vê os pássaros atacando as pessoas e fazendo com que um homem acabe por explodir um carro e um posto de gasolina, tocando fogo na rua. O caos instaurado é momentaneamente arrefecido quando temos uma mudança do ponto de vista e, de um plongée altíssimo, vemos pelo que seria o olhar dos pássaros a destruição causada por eles, ouvimos os gritos e o som do fogo abafados pela distância.
Pássaros começam a surgir dentro do campo. Primeiro, suas imagens, depois, gradualmente, seus sons. Assim como na cena da escola, é fundamental que isso ocorra, pois nesse momento o espectador já associou as duas coisas que mencionei anteriormente: as imagens dos pássaros é motivo de suspense, de expectativa do ataque, o som é motivo de terror, eles só gralham quando chega o momento de enfim atacar. Os pássaros tomam a cidade. Melanie se engaiola em uma cabine telefônica enquanto é atacada.
O sexto definitivamente faz essa separação da imagem e do som dos pássaros. Engaiolados em sua própria casa, o ataque é um dos menos perigosos, mas o mais aterrorizante, justamente porque vemos no máximo um ou dois pássaros. A única coisa que sentimos é o som ensurdecedor deles. Não ver significa que podemos esperar de tudo, que os pássaros podem vir de qualquer lugar, que a ameaça é sulfurosa.
O último ataque é o único silencioso, sobre ele é importante citar o próprio autor: “Quando Melanie está trancada no sótão com os pássaros assassinos, nós colocamos apenas o som natural das asas. É claro que eu tive a licença dramática de não fazer os pássaros gritarem de maneira nenhuma. Para descrever um som acuradamente, alguém tem que imaginar seu equivalente em diálogo. O que eu queria é que esse ataque fosse como se os pássaros estivessem dizendo a Melanie: ‘agora, nós a colocamos onde queríamos. Aqui vamos nós. Não precisamos gritar em triunfo ou raiva. Isto vai ser um assassinato silencioso’. É isso que os pássaros estavam dizendo e nós colocamos técnicos para conseguir esse efeito através de som eletrônico.”
A cena final do filme é bem elucidativa nesse sentido que Hitchcock expõe. Todos fogem no carro de Melanie com a cidade completamente tomada, espacial e visualmente, pelos pássaros. O silêncio ambiental é absoluto. Ao ligar o carro, o som do motor, quase sempre ruidoso, é praticamente imperceptível.
Ao final, ele é simplesmente soterrado pelo gralhar dos pássaros. O homem foi conquistado, perdeu o que o cinema e, posteriormente, o som lhe deram. A mise-en-scène e a diegese sonora pertencem aos pássaros. Hitchcock, que sempre sonhou com o domínio do absoluto, fez dos pássaros metáfora para si.