Bemdito

Os afetos da política ou por que não precisamos de terceira via

Como se pode equiparar lulismo com bolsonarismo, Lula com Bolsonaro?
POR Ricardo Evandro
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O artigo da coluna de hoje é uma tentativa de crítica ao texto da colunista Monalisa Torres, chamado Por que precisamos de uma terceira via?,  publicado em 6 de julho. Como se pode ver pelo título e pela leitura de seu texto, Torres parece responder à própria pergunta, confirmando a “importância de uma terceira via forte e unificada em torno de um projeto político”. 

Mas não apenas isso, Torres também conclui seu texto retomando a premissa mais básica de sua análise, ao falar da “necessidade de retomar um pouco da racionalidade política associada a um olhar positivado de uma alternativa fora dos polos”, e que, por isto, “são válidos os esforços de construção de uma terceira via que, furando a bolha da polarização radicalizada, consolide um projeto político como alternativa dentro do campo democrático”. 

Bem, com todo respeito à colega colunista, preciso, aqui, não deixar sem crítica esta sua análise. Julgo que o texto de Torres incorre em equívocos, por meio de reducionismos de análise, a partir de premissas igualmente equivocadas e reducionistas. 

Talvez não seja intencional, mas o texto de Torres não percebe que o fundamento da sua premissa mais básica – a de que há “dois componentes fundamentais” orientadores dos embates políticos – guarda consigo a ideia de que, ainda que pondere que o componente afetivo e o componente racional não são “excludentes entre si”, há, ainda assim, uma leitura pretensamente neutra e racional, pretensamente ponderada entre razão e afetividade, e que superaria a polarização política da atual conjuntura brasileira. 

Ocorre que fica realmente fácil pedir por mais racionalidade ao estabelecer que vivemos em dois polos irracionais, apaixonados politicamente, e, disto, concluir que é importante uma via terceira entre razão e afeto. O equívoco, contudo, é não perceber que se está partindo da ideia reducionista – esta, sim, bipolar – de que a política está divida entre razão e afeto. 

Se ao menos Torres levasse às últimas consequências a sua tentativa de ponderar sua própria premissa inicial, quando falou sobre como não são excludentes aqueles dois componentes do político, ela poderia, então, ter promovido mais dialeticidade em sua leitura, a qual parece ainda achar que pode incorrer em sumidade intelectual ao ocupar uma perspectiva sobre a realidade sem afetos, ou ao menos equilibrada, para fugir de uma realidade que estaria, segundo ela, em apaixonamento. 

Direito e política

Em O circuito dos afetos (2016), o filósofo brasileiro Vladimir Safatle lembra de um trecho de O processo, de Franz Kafka, quando o personagem Josef K. voltara ao tribunal onde corre seu inquérito judicial, mas, agora, sem expediente, estando apenas a esposa do oficial de justiça, momento em que também encontrou alguns livros velhos sobre uma mesa. Por uma jogada chantagista, K. consegue a permissão para abrir os livros, pensando que poderiam ser justamente os misteriosos códigos sob os quais está sendo processado. 

Segundo Safalte, para surpresa de K., ao abrir aqueles livros, ele se depara com um fato: “não há leis, apenas pornografia barata”. Em vez de textos, artigos de leis, havia ali “figuras de ‘uma corporeidade excessiva”’. Sobre isso, Safatle tem uma leitura muito curiosa: “No lugar da lei, das normas e das regras, havia, na verdade, um circuito de afetos”.

Sabe-se que ideia sobre o Direito, mas também sobre a política, enquanto atividades ou fenômenos sociais operados pelos afetos, e não pelo predomínio da razão, já adviriam de uma não tão nova crítica feito por um outro judeu heterodoxo, como Kafka: B. Spinoza. Na sua Ética (1677), por mais que entenda por servidão como sendo “a impotência humana para regular e refrear os afetos”, Spinoza também se propôs a mostrar “o que os afetos tem de bom ou de mau”.

A partir disso, ao tratar dos direitos supremos da natureza no que concerne à faculdade de cada um fazer “o que se segue da necessidade de sua própria natureza” e, por isto, de julgar “o que é bom e o que é mau”, Spinoza diz que é verdade que “se os homens vivessem sob a condução da razão, cada um desfrutaria desse seu direito sem qualquer prejuízo para os outros”. Contudo, o filósofo judeu, de origem luso-holandesa, diz que “[os homens] estão submetidos a afetos, os quais superam, em muito, a potência ou a virtude humana”, então, que “nenhum afeto pode ser refreado a não ser por um afeto mais forte e contrário ao afeto refreado (…)”. 

A partir dessa realidade política denunciada por Spinoza, talvez possamos entender o que Safatle quis dizer ao afirmar que as “sociedades são, em seu nível mais fundamental, circuitos de afetos.”. Por isso, quando Monalisa Torres fala que o componente afetivo tem “predominado e organizado o campo das disputas eleitorais”, isto não pode ser lido como um problema político a ser superado pela “razão” somente. O que ela chama de “componente afetivo” é, na verdade, só a política mesma em operação. 

Vislumbrar o circuito dos afetos como algo ruim, ou, pelo menos, como algo que necessitaria de um equilíbrio racional, e que tal ponto de equilíbrio teria de se dar por meio de um caminho político outro que não esteja polarizado, Torres se equivoca por justamente não perceber o seu próprio afeto político em jogo, circulando diante desta posição racional: o temor pela radicalização ou a indisposição pelo que considera como o polo de esquerda. 

Há, enfim, também uma certa ingenuidade na leitura política em achar que, tirando a si mesma, o que se apresenta está sob o irracional, regido pela afetividade. Ora, como se ousa achar que a própria posição tem o privilégio de neutralidade digna de uma pretensa racionalidade na própria perspectiva, enquanto aquilo que se difere de si seria uma posição radical e polarizada? 

Veja, nem adentrei ainda na já muito problemática questão de se equiparar a radicalidade do bolsonarismo com as intenções de voto da esquerda, pelo pretenso candidato à presidência, pertencente ao PT. Ainda estou tentando colocar sob questionamento a tamanha pretensão de se ter um olhar privilegiado, sob luz da razão, ou de maior racionalidade. 

Polarização

Pois, caso esee questionamento faça algum sentido, podemos passar, então, à problemática da premissa seguinte do texto de Monalisa Torres, a qual, partindo da ideia de que aquilo que está fora de sua leitura centrista, contemporizadora, estaria, então, uma “polarização radicalizada” que tem, como consequência, segundo a autora mesma diz, “favorecido candidaturas populistas”. 

Sabendo que esse tema é muito difícil de se lidar em tão poucas páginas, em coluna de jornal, e também porque ainda está para além da minha compreensão minimamente razoável, não vou me atrever a elaborar uma discussão polêmica sobre como talvez só o populismo de esquerda poderia enfrentar o populismo de direita, especialmente no contexto pandêmico, conforme diz o artigo de Chantal Mouffe, em Não subestimem o populismo de esquerda (2020). Queria mais, aqui, simplesmente contestar o julgamento do texto de Monalisa Torres sobre como seria Lula o opositor análogo de Bolsonaro. 

É bem verdade que se tratam de pré-candidatos muito “carismáticos” – para usar um termo do neokantismo pretensamente neutro de Max Weber –, e que movimentam afetos políticos fortes. Porém, acredito que é muito equivocada a leitura de que seriam Lula, a militância petista e os demais eleitores, nas ruas ou na militância virtual das redes sociais, os representantes de uma polaridade política radical. 

Os governos de Lula e o de Dilma não foram marcados por radicalismos. Nem sequer as políticas públicas foram radicais. Ninguém precisa estar filiado ao Partido dos Trabalhadores, nem precisa ser eleitor ou militante de esquerda verdadeiramente radical para concordar com isto: os governos petistas, na Presidência da República, foram, no máximo, social-liberais. Ora com suas políticas afirmativas que se deram por programas de combate à miséria e à fome, com bolsas sociais – que foram ampliações dos programas do governo do PSDB, de Fernando Henrique Cardoso –, ora com e pelo aumento do serviço público, ainda quantitativamente deficitário, para dizer o mínimo. Ao mesmo tempo, “nunca antes na história desse país” os bancos lucraram tanto e também o capital rentista.

E até queria saber mesmo de Torres: como esse tipo de governo pode ser chamado de “radical”? Afinal’ nenhuma ordem constitucional foi rompida, nem ao menos um estado de sítio foi declarado – o que não ocorreu nem com as manifestações de junho de 2013 -, algo até previsto pela Constituição vigente. Este mesmo governo foi vítima de um verdadeiro golpe político em 2016 e um golpe judiciário-midiático, com a Lava-Jato. Nem sequer os escândalos de corrupção com a Petrobrás, empreiteiras, construtoras e frigoríficos foram novidade em se tratado de esquema e área de desvio de dinheiro. 

Já que citei o golpe de 2016, é muito interessante notar como no texto de Monalisa Torres há também a presença de premissas básicas, das quais a autora infere sua análise de conjuntura política, citando Antônio Lavareda, quando o analista político falou sobre como “desde 2016, as eleições no Brasil estão inseridas no que ele denominou por ‘ciclo de eleições críticas’”. Sem definir do que se trata a expressão, Torres se limita a explicar as causas do “ciclo”, partindo, desde então, de outra premissa, agora conforme Lavareda, ao alegar que “o ciclo de eleições críticas foi resultado de aguda crise econômica e política no país, que provocou desmoronamento do sistema partidário eleitoral”. 

O que é interessante nessa premissa e nessa conclusão é como se esquece que a crise econômica se deu pela queda dos preços dos commodities, pela dificuldade que Dilma Rousseff encontrou em fazer as reformas legislativas necessárias para retomada econômica, mesmo tendo um ministro da Fazenda neoliberal, na época, diante de um Congresso liderado por Eduardo Cunha, tendo Aécio Neves como figura central, ambos em campanha pelo impeachment, junto com até então vice-Presidente Michel Temer. E como se poderia esquecer do lavajatismo, com os absurdos históricos para o mundo político e jurídico, cometidos por Sérgio Moro e Deltan Dallaganol? 

Todas essas crises econômicas e políticas não se deram devido a uma suposta radicalidade de Lula e de Dilma. Também é um completo absurdo pensar que o PT de hoje tem algum tipo de posicionamento radical, ou que a militância de mais de um milhão e meio de filiados estaria radicalizada, agindo de modo truculento contra o STF ou nas ruas, como se fosse algum grupo bolsonarista semelhante ao de Sara Giromini, ou do tipo bolsonarista valentão como o do Deputado Daniel Silveira, ou, ainda, algum grupo que propaga memes odiosos como o MBL – hoje não mais apoiadores da candidatura de Jair Bolsonaro, mas se trata de um grupo que já foi mais agressivo no passado, é verdade, o que não os alivia em nada na responsabilidade pela radicalização antipetista, de direita.

Também gostaria de saber como Monalisa Torres pode dizer que “o petismo alimenta o bolsonarismo, e vice-versa”, quando as pesquisas mais recentes de opinião de voto mostram justamente que o apoio à candidatura de Lula só aumenta, enquanto que o apoio a Bolsonaro apenas derrete, cada vez mais. Então, como um alimenta em reflexo o outro, quando um cresce enquanto que o outro está em queda livre, chegando-se ao registro de quase o dobro de índice de intenção de voto por Lula em relação a Bolsonaro? Esta equiparação, além de falsa, sob o ponto de vista eleitoral, também o é sob o ponto de vista ideológico-político.

Pois não são duas radicalidades em sentidos opostos. Se o bolsonarismo é um tipo de neoliberalismo militarista e autoritário, o lulismo jamais pode ser considerado como um autoritarismo de estado anti-militarista. Tal inversão não faz sequer sentido, nem se o lulismo fosse uma espécie de versão de esquerda do “neoliberalismo militarista” de Bolsonaro, o que seria também um nonsense sem tamanho.

Não há “antagonismo perfeito”, como diz Torres, simplesmente porque o bolsonarismo nem ao menos está mais – se já foi algum dia – no campo democrático. Nesta semana mesmo, para se unir à sua coleção de frases insanas, Bolsonaro disparou: “Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”. Enquanto que Lula, em entrevista recente para o jornal paraense O Liberal, é aquele que, mesmo diante do processo ilegal, nulo, liderado pelo ex-juiz Sérgio Moro, manteve-se na prisão, negando qualquer oferta de asilo político, de fuga para uma embaixada. 

Afinal, diante de tudo o que disse até aqui, como se pode equiparar lulismo com bolsonarismo, Lula com Bolsonaro? E, mais, ainda dizer que Bolsonaro é um outsider? Como um outsider da política, do jogo político, pode ter mais de 30 anos de carreira política partidária, ocupando escândalos midiáticos na própria Câmara, usufruindo muito até demais da sua imunidade parlamentar? 

Essa leitura sobre Bolsonaro, como se ele fosse um Donald Trump tropical, empresário, super-rico, que nunca disputou uma eleição, que não tem experiência em gestão de recurso público, ou que nunca foi sequer servidor público, nem como militar dos EUA, não tem o menor cabimento. 

Bolsonaro foi, no máximo, um outsider do mensalão. Sobre isto, resta saber se não o foi por causa do seu caráter, porque seria algum tipo que tem respeito ao dinheiro público, ou porque apenas era somente um radical de direita. Vamos aguardar as próximas etapas das investigações sobre “rachadinhas” com Queiroz e com o ex-cunhado do próprio atual presidente. 

E não posso concordar que o lulismo captura o seu eleitorado “a partir do que se rejeita no adversário (visto, quase sempre, como um inimigo a se bater), mobilizando, para tanto, afetos negativos”. Certamente os afetos negativos que circulam na mais alta rejeição a um presidente brasileiro em nada têm a ver com o apoio à candidatura de Lula, com suas manifestações públicas etc. Aliás, nem ao menos sabemos por onde anda o ex-presidente. Fez nesta semana uma entrevista a um jornal do norte do país, como citei, mas nem mesmo tem se manifestado muito. 

Se há mesmo algum afeto negativo sendo alimentado, a fonte está na CPI da Covid. Os depoimentos levantam suspeita sobre como o atraso e a rejeição de vacinas talvez tenha ocorrido, não só porque se acredita no uso de remédios sem eficácia comprovada e na imunidade de rebanho – para se lidar com a pandemia, que já vitimou mais de meio milhão de pessoas -, mas também porque desde o início se quis barganhar a compra de vacinas com preço acrescido de propina. 

Bolsonaro, PT e PSDB

Enfim, não posso aceitar que “qualquer alternativa que não esteja em um desses polos é ignorada/rejeitada”, como diz Torres. Até mesmo porque a terceira via já existe há tempos: foi e é Jair Bolsonaro a terceira entre a via do PT e do PSDB, em 2018, e possivelmente em 2022, mesmo que outro partido tome o protagonismo tucano. 

Aliás, nem sabemos se alguma via existirá em 2022, quanto mais clamar por uma via “no campo democrático”, que não seja “radical”. Mas é verdade o que Torres diz: temos de abrir possibilidade para “discutir o que ‘o eleitor deseja’ e quais projetos estão sendo propostos para o futuro”. 

Só que, como disse Juliana Diniz em A miragem da terceira via (2021), “não podemos nos dar ao luxo de ser ingênuos”, e a partir disto, diria mais, não podemos endossar um equívoco tão grande como o de equiparar o lulismo com o bolsonarismo, tampouco não perceber a cilada que é esta, no fundo, uma verdadeira atualização do antipetismo – mas, agora, esclarecido. Talvez seja o antipetismo o mau afeto político de fundo a uma leitura que invoca a própria racionalidade e o equilíbrio entre supostos “radicalismos” equiparados, entre bolsonarismo e lulismo. 

Por fim, um último argumento pragmático: talvez sejam imperdoáveis mesmo os escândalos de corrupção em torno do PT. E nada nos assegura que vai ser diferente, caso Lula seja reeleito – pois até isso ocorrer, se ocorrer, concordo com Torres que há “muita água a passar por debaixo dessa ponte!”. O desencanto com o PT é válido, se assim se quer pensar. 

Mas vamos mesmo arriscar uma “terceira via” inexistente ou uma via que apoiou Bolsonaro em 2018 – e que por isso está com as mãos sujas de sangue desta pandemia, ainda em curso -, como uma candidatura do PSDB, MDB, DEM, etc.? Ou vamos mesmo arriscar uma “terceira via” que está bem distante do segundo turno, conforme dizem as últimas pesquisas de intenção de voto, como é o caso da candidatura de Ciro Gomes (PDT)? 

Que “afeto político” é esse que prefere se lançar no vazio ou no insipiente e deixar Bolsonaro reeleito em função dos antipetismos ou dos equívocos graves na leitura de conjuntura? Aliás, que “razão” é essa que esconde seu afeto em nome de uma centralidade isenta? 
Lembrando do pintor espanhol Goya, quando soube da violência autodeclarada esclarecida de Bonaparte, talvez esta seja uma razão que dorme, e que produzirá sueño, sonhos, ou pior, pesadelos, monstros, como tem sido de 2018 para cá. 

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.