Os capitães da areia foram dançar em Portugal
Companhia Nome Próprio sublinha a atualidade do romance de Jorge Amado e mostra que os livros têm uma vida além da vida
Magela Lima
lima.magela@gmail.com
Sabe aquela tese, tão absurda quanto tentadora, que faz crer que, em se tratando de uma obra adaptada da literatura, basta ver o espetáculo ou filme de que dela tenha se inspirado para se conhecer o livro original? Esqueça. Margem, do português Victor Hugo Pontes, ressignifica o romance Capitães da Areia, título dos mais populares do baiano Jorge Amado (1912-2001), de uma forma muito potente e particular. O espetáculo – que estreou em Lisboa em janeiro de 2018 e foi apresentado no Brasil pela primeira vez agora em março, na programação virtual do Festival de Teatro de Araçatuba, no interior de São Paulo – alinha a história dos meninos do trapiche de uma Salvador meio documental, meio ficcional, da primeira metade do século XX com a realidade da história dos jovens abrigados nos reformatórios portugueses de hoje. Joga ainda com a história pessoal dos 13 corpos, quase todos adolescentes, como os da Cidade Baixa e os assistidos pelas instituições, que levam essa encruzilhada de narrativas à cena. É absolutamente encantador acompanhar uma diversidade de Doras e Pedros Bala se encontrando, aproximando passado e presente, problematizando questões que, infelizmente, o tempo não superou.
A dramaturgia de Joana Craveiro, do Teatro do Vestido, se apropria da escuta e do encontro com os menores acolhidos na Casa Pia, em Lisboa, e no Instituto Profissional do Terço, no Porto, que marcou parte do processo de pesquisa da montagem. Desde sempre, Victor Hugo Pontes estava decidido a não fazer uma ilustração direta de Capitães da Areia. De fato, não fez. Fez mais. A ideia era, a partir dos conflitos apresentados por Jorge Amado, procurar encontrar ecos daquele 1937 ainda presentes em pleno correr do século XXI. Quem, afinal, são os Capitães da Areia de agora? Ao concluir que parte deles deixou de ter a liberdade das ruas e passou a ter como “casa” ambientes institucionais, o coreógrafo conecta episódios de abandono, de violência, de indiferença, de preconceito, presentes na letra de Jorge Amado, a tensões de feição mais contemporânea, como a imigração, por exemplo. Ao se recusar a fazer um espetáculo sobre Capitães da Areia, num sentido mais recorrente nesse tipo de criação, Victor Hugo Pontes, mesmo dando conta de uma realidade europeia, seduz tanto olhares já íntimos da aventura registrada por Jorge Amado quanto aqueles que nunca sequer folhearam uma de suas páginas. É que o diretor não fez do livro um deflagrador de sua criação, mas, sim, um décimo quarto intérprete em cena.
Na sala de ensaio, a leitura se antecipou a tudo o mais que pudesse vir. Em voz alta, atores e bailarinos se revezavam na lida com o texto de Jorge Amado e, juntos, como os meninos do velho trapiche, iam se conectando, se percebendo e se afirmado enquanto grupo, ao tempo em que se davam conta de que aquela história não era a história deles, mas bem que poderia ser. Como resultado, Victor Hugo Pontes compôs um coletivo, uma irmandade, uma comunhão, absolutamente coesa e poderosa. Artista de percurso atípico, tendo iniciado sua formação nas artes visuais, chegado ao palco pelo teatro e, só depois, consolidado sua criação na dança, Victor Hugo Pontes trabalha sempre na interface de linguagens. Antes de estrear “Margem”, a palavra, o texto escrito, já havia demarcado outras de suas coreografias. O espetáculo Se alguma vez precisares da minha vida, vem e toma-a tem como ponto partida a peça A Gaivota, de Anton Tchekhov; Drama é inspirado em Seis personagens à procura de um autor, dramaturgia de Luigi Pirandello; e Orlando nasce do diálogo do artista com a obra de Virginia Woolf. Mais recentemente, a Companhia Nome Próprio pôs em cena Os três irmãos, texto especialmente criado por Gonçalo M. Tavares para Victor Hugo Pontes.
Enquanto mantém conexão com outros espetáculos assinados por Victor Hugo Pontes no que diz respeito à aproximação entre dança e literatura, Margem ocupa lugar inédito em sua trajetória pelo perfil do elenco com que o diretor trabalha. A montagem tem momentos de poesia plena com o palco tomado de uma força e um caos próprios da juventude. Victor Hugo Pontes embaralha idades e narrativas num jogo em que quanto mais a gente se perde mais a gente se encontra. Nesse sentido, lembra um pouco a estratégia do suíço Milo Rau em Five Easy Pieces ao recuperar, com crianças e adolescentes de 8 a 13 anos em cena, o caso real do pedófilo belga Marc Dutroux. Margem tem uma estrutura que remete ao livro, como os nomes dos personagens e os capítulos, mas vai adicionando camadas ao texto de Jorge Amado ao passo que introduz histórias novas, alheias ao romance. É o caso da história do brasileiro Magnum Soares, que está no elenco sem nenhuma referência direta às páginas, embora dilate de forma muito violenta e muito bonita a presença do Brasil e de um autor brasileiro numa peça portuguesa, levantando críticas ao persistente pensamento colonial.
Na formação de Victor Hugo Pontes, há que se pontuar, o Brasil tem lugar de destaque. É aqui, aos 17 anos, numa outra vida, como costuma dizer, que ele se inicia no tetro. Então, integrou o elenco da montagem de O reino desejado (1996), texto do cearense Ronaldo Correia de Brito, encenada num projeto que reunia os encenadores Moncho Rodriguez, Agustin Iglesias, Luiz Carlos Vasconcelos e Tarcísio Pereira. Victor Hugo Pontes sabe bem que o Brasil é maior do que podem abarcar as rotas do turismo. Sabe tanto que soube transpor a Salvador de 1937 para a Lisboa de 2018. Com esse deslocamento, o coreógrafo desenvolveu uma obra de expressivos contornos multiculturais, festejando encontros, sem se perder no elogio ingênuo. Margem é um espetáculo português, inspirado num artista e numa história brasileira, cheios de sons, corpos e movimentos da diáspora africana. Tudo isso se junta sem que as diferenças se apaguem. Margem tem uma beleza festiva, entusiasmada, é contagiante, agregador e, nesse sentido, é político, engajado, militante, como foi e continua sendo o velho e tão atual Capitães da Areia. Salve, Jorge!
Magela Lima é pesquisador e crítico de teatro. Está no Instagram.