Bemdito

Os múltiplos papeis de Damares

Por que ainda consideramos as pautas da ministra como uma cortina de fumaça?
POR Geórgia Oliveira
Foto: Fabrice Coffrini / AFP

Por que ainda consideramos as pautas da ministra como uma cortina de fumaça?

Geórgia Oliveira Araújo
georgia.araujo17@gmail.com

Desde janeiro de 2019, muitas são as discussões sobre qual seria o papel da ministra Damares Alves na estabilidade política e na construção de narrativas do Governo Bolsonaro. Parte considerável daqueles que se colocam em oposição ao governo veem nas pautas priorizadas pela ministra e em suas falas e ações no campo dos “costumes” uma “cortina de fumaça” para mascarar os reais problemas do governo que, segundo eles, estariam ligados à pauta econômica e à corrupção. No entanto, desconsiderar a intersecção entre o projeto conservador do bolsonarismo e suas ações no plano político-econômico impede uma leitura completa do cenário nacional.

Em recente discurso à Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 22 de fevereiro, o papel da ministra e de suas pautas para a estabilidade do regime bolsonarista se tornou bastante claro. Em uma fala de três minutos e meio, precedida pelo chanceler Ernesto Araújo, Damares Alves abordou as dificuldades e os desafios trazidos pela pandemia de Covid-19 e as ações do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos na proteção de grupos minoritários. Com objetos e fotografias de indígenas dispostos – propositalmente – como plano de fundo, a ministra aparece descrevendo o que seria uma longa lista de ações nos eixos sanitário, de proteção social e econômica que teriam beneficiado mulheres, idosos, pessoas em situação de rua, pessoas com deficiência, famílias em localidades urbanas vulneráveis, povos e comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas. Destacando a proteção da Amazônia e de sua população, a criação do Programa Abrace Marajó e o maior orçamento executado pela pasta nos últimos cinco anos para a defesa dos direitos das mulheres, a ministra apresenta um país que parece não enfrentar enormes taxas de desmatamento, queimadas e o aumento da violência de gênero agravada pelas condições de distanciamento da pandemia de Covid-19.

Mesmo antes desse discurso, o descompasso entre o orçamento empenhado – ou seja, reservado para uso – pelo ministério e aquele efetivamente gasto no ano de 2020 já havia sido questionado pelo Gênero e Número*. A partir de dados do Portal da Transparência, a reportagem demonstrou que apenas R$ 333 milhões, pouco mais da metade do orçamento de R$ 617 milhões da pasta, foi efetivamente gasto, com discrepâncias enormes em muitas das áreas citadas pela ministra ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. No campo específico do combate à violência de gênero, chama a atenção o fato de que a pasta investiu apenas R$ 2 milhões do total de R$ 106 milhões reservados para efetivação de políticas para mulheres, além da total ausência de investimento diretos em políticas para a população LGBTQIA+, apesar dos já escassos R$ 800 mil empenhados para essa finalidade. Políticas para juventude e para a população em situação de rua igualmente não receberam investimentos, e a pauta de igualdade racial teve 80% do seu valor empenhado negligenciado pelo ministério.

Ao finalizar seu discurso, reafirmando a defesa “da democracia, liberdade, família e da vida a partir da concepção”, a ministra acenou ao conservadorismo bolsonarista ao qual já estamos habituados. Essa é apenas a superfície do projeto de esvaziamento do investimento público, de omissão quanto à degradação do meio ambiente e do genocídio negro e indígena, além da discriminação de grupos minoritários, um projeto com o qual Damares Alves colabora de forma expressiva. Ao se apresentar como uma figura conservadora, religiosa e familista, aparentemente insuspeita, fixada em nossa memória a episódios bobos como a fala “meninos vestem azul, meninas vestem rosa” e a presença de Jesus em uma goiabeira, a ministra consegue gerar a ilusão perfeita de ser apenas uma “cortina de fumaça”, quando na verdade é em seu Ministério que o projeto bolsonarista se realiza de forma melhor acabada.

Eis o risco de tratar temas como a garantia de direitos reprodutivos, o aborto legal e seguro, o enfrentamento à violência contra grupos minoritários e o combate à “ideologia de gênero” como interesse apenas de nichos específicos dos movimentos sociais: atribui-se apenas à pauta dos “costumes” problemáticas que estão intrinsecamente conectadas à questões políticas e econômicas, não sendo menos importantes que estas. Enquanto pautas de gênero, raça, classe, dentre outros marcadores sociais da diferença, permanecerem ligadas apenas à figura caricatural da ministra Damares Alves, sendo levadas como problemas secundários enfrentados pelo país, escapará à percepção de muitos o nível de entrelaçamento que as ações desenvolvidas em seu ministério possuem com os desafios políticos e socioeconômicos que se apresentam. E assim, a ministra também passa a sua boiada.

Geórgia Oliveira Araújo é colaboradora do Bemdito e pesquisadora na área de violência de gênero. Está no Instagram.

*Reportagem de Lola Ferreira. “Pouco dinheiro gasto por Ministério de Damares em 2020 impacta mulheres e LGBT+ e gera temor sobre o futuro da pasta”. Portal Gênero Número.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.