Paetês no supermercado ou sobre querer
O uso de algo previsto na banalidade do cotidiano pode ser uma forma de dizer que se quer e se pode
Alice Dote
alicedote@gmail.com
Sábado, segundo dia do segundo período de isolamento social rígido. Segundo ano de pandemia. À noite, enquanto escovava os dentes, lembrei-me de uma peça de roupa há muito ausente das passeadas do olhar entre os cabides, prateleiras e gavetas do armário. Da mesma maneira que um encadeamento aparentemente aleatório de imagens do pensamento cintilou a imagem da blusa, uma outra sequência de conexões emitiu a pista de onde se escondia ela: no alto do compartimento, em uma caixa de plástico que abriga artigos carnavalescos.
Adereços de cabeça, máscaras venezianas, potes de purpurina, cartelas de pedras adesivas, brincos de papel laminado, coloridos cílios postiços, fitas de plumas e de lantejoulas, pedaços de pano de tule, lurex, lamê e paetês. A cada ano, incremento meu modesto acervo de opulência barata, e me deleito a exibi-lo pelo quarto e com ele brincar durante os dias de festa, quando o exagero represado dispensa justificativa. Dessa vez, carnaval não houve, a noite na rua não existe, para mim, há um ano, e esses objetos colecionados de outros carnavais permanecem como vagalumes capturados num potinho, intactos nessa caixa.
A peça subitamente recordada lá estava. Mais pelo brilho que a coloca em óbvia afinidade com as demais do que por tê-la usado em trajes carnavalescos. A cada um dos quatro carnavais desde que a adquiri, ensaiei usá-la, mas ela nunca saiu de casa. Esse não é, portanto, um texto sobre memória.
Percebo que o isolamento social, esse decretado rígido, gera-me uma urgência inexplicável, embora compreensível, que, em parte, relaciona-se à constatação instantânea de que certas coisas não são grande coisa. Da primeira vez que o enfrentei, por exemplo, decidi usar, de uma vez, meu melhor bloco de papel, aquele guardado para alguma ocasião especial (que eu não consigo imaginar qual seria). Lembro-me de pensar que o que vinha sendo poupado, de palavras a objetos aguardando seu momento, deveria acontecer agora, no fim do mundo. Pressupus que, preparada por essa experiência inaugural, a segunda sequência infindável de dias em casa me deixaria protegida de tal sensação de urgência. Sei que o mundo não vai acabar, embora o fim ronde os dias. Talvez isso ainda sintam os objetos pela casa, as sensações pelo corpo, os pensamentos pela garganta, e assim não obedeçam à ordem prévia que tentei a eles assegurar.
Os livros na estante solicitam insistentemente que eu os folheie, o novo sabor de geleia não aguenta um dia mais sem que eu o descubra, as cadeiras dobráveis pedem para espreguiçarem suas juntas, até os ventiladores quebrados num canto da sala imploram que eu resolva sua situação de inutilidade. É como se, diante do desespero que (só) a palavra lockdown é capaz de provocar (tomando emprestada a observação de um meme), o adiamento de vontades e resoluções banais fosse quase insuportável — ou, ao menos, bastante incômodo e difícil de carregar, uma vez que já nos acompanha, há tempo demais, tantos outros retardos — e esses, frequentemente, mais importantes ou doloridos.
Não é que tenha se produzido uma tal necessidade vital de vestir aquela peça de paetês recém-redescoberta. Mas, quando a pontinha de querência surgiu, o fez acompanhada do entendimento rápido, como de algo óbvio demais, de que: isso não é coisa de se adiar, porque isso não é grande coisa.
Às seis do domingo, uma hora antes do supermercado abrir, despertei. O céu ainda escuro próprio das manhãs chuvosas. Na blusa de alças, as dezenas ou centenas de pequenos discos plásticos são costuradas de modo a compor uma pele de escamas maleável ao toque. Movendo-se na direção desejada pelos dedos ou por qualquer outra superfície que ali encoste ou esbarre, formam transitórias rajadas de azul e preto, como um registro efêmero dos contatos mais ou menos acidentais. Mas, repito, esse não é um texto sobre memória.
Hesitei em deixar viver o repentino ânimo de usar essa peça. Também de repente, imaginei consistir quase um insulto cobrir-me com algo tão brilhoso em uma manhã de domingo que alaga as avenidas da cidade; em dia de pico de vítimas da pandemia; em um país que tem Bolsonaro como presidente. Uma veleidade. Um desvario. Um sentimento — por aqui até constante demais — de vãs e culpadas vontades me esmoreceu. É como se o brilho dessa peça remetesse a uma alegria que não (nos) cabe.
Quando me falam sobre o vestir-se utilizando termos como “coragem”, sinto certo mal-estar. A mim, a coragem é um esforço, de resultados nunca assegurados, para tantas outras coisas, mas não para me vestir. Para muitas mulheres, só com muita coragem se sai de casa, com o que quer que seja que a cubra. Bravura alguma me pedem esses paetês que me maravilham os olhos, e efeito nenhum parecem gerar aos olhos de outrem ao passear entre laranjas e melões no supermercado em uma manhã de domingo. Evito continuamente esse delírio.
Me pego em surtos de ceticismo quanto à (por mim já tanto repetida) potência do pequeno. Das irrisórias decisões cotidianas, dos quereres vulgares, dos fazeres banais. Não é o brilho e a cor das superfícies têxteis que colocamos no corpo ou que enxergamos em outros corpos que vai mudar a desgraça que vivemos. Assim como as escritas nas superfícies urbanas, as figuras em nanquim ou as palavras em grafite na superfície do papel, ou o sol nas superfícies brancas das paredes de casa. Mas é o que eu tenho esses dias. É o que tem os revelado e me revelado.
Encantar: o primeiro significado apontado pelo dicionário diz sobre exercer encantamento ou tornar(-se) encantado. Em uma mesma acepção, coexistem os gestos de encantar e de encantar-se. Ambos me parecem ser quase sempre acidentais e, ao mesmo tempo, requerer uma constante teimosia na intencionalidade. Querer: sentir vontade, investir intenção, desejar. Eu só quero porque ou quando (me) encanto.
Aos rompantes de ceticismo, seguem pacientemente a trabalhar as sementes do incansável encantamento, lembrando-me da esperança que ainda mantenho no que me seduz. No que me acende. O gosto de ameixa que escorre da boca, o acetinado coral e gelado de uma calça, o relevo quase imperceptível da mistura entre tinta e água segundos antes de absorvida pelo papel (e do óleo, também de ameixa, segundos antes de absorvido pelo corpo), as composições fotográficas do sono das vira-latas, o som do rasgar das embalagens dos livros novos, o aroma quente da canela na xícara de café, o brilho que centenas de minúsculos discos azuis fazem dançar no mais leve mover-se. A gentileza das coisas. O prazer das imagens. Sustentar o desejo de sentir um pouco de fascínio em cada uma delas, não importa tanto quais, elas que, afinal, nos acompanham todos os dias.
Acabei de ler que “o vestir, como a leitura, é um suspender das descrenças”. Se essas coisas que colocamos em contato com a pele, se esse encontro de superfícies, nos revelam, não o fazem somente aos olhos de outrem, mas nos lembram quem somos ao produzirem uma vibração qualquer em nosso corpo, burlando a apatia que ameaça nos dominar e atrevendo-se contra a indiferença que tenta nos roubar as emoções. Lembrando-nos que somos, ainda, capazes de sentir. Podem não mudar o mundo, mas o que nele temos de mais precioso, ainda que insólito, parece ter sido construído pelo que nos envolve ou é por nós envolvido, pelo que nos mobiliza a vontade, pelo intento e pelo prazer que, por mais banais que sejam, ou justamente por tão banais que são, deixamos existir.
Não sei se você já sentiu esvaziar-se o querer. Há uns dois anos, escrevi, com uma caneta marcadora vermelha, “eu quero” em um poste de luz da minha rua. Eu quero — sem objeto, sem quando, sem quanto, sem como. Debatia-me silenciosamente com a angústia de perceber ir se esvaindo a capacidade de encontrar onde se enfiavam meus quereres, irem sumindo as palavras que decidem, ir se enfraquecendo até mesmo a capacidade de intencionar: eu, um constante tanto-faz (jamais blasé, sempre angustiado). Eu queria saber do que eu gosto, do que eu quero. Eu queria conseguir perceber minhas vontades. Eu queria deixá-las existir. Eu queria querer.
Talvez, quando eu use paetês no supermercado — mas, veja só, não se trata de paetês —, eu esteja apenas dizendo “eu quero”.
Alice Dote é mestre em sociologia e artista visual. Está no Instagram.