Bemdito

Para o Piauí, com amor

No ordinário das rugas familiares e dos amuletos, reside a terceira margem de cada um, o nosso chão
POR Simone Mayara

No ordinário das rugas familiares e dos amuletos, reside a terceira margem de cada um, o nosso chão

Simone Mayara
simonempf@gmail.com

Os últimos textos que publiquei por aqui tiveram muito da observação do quanto a vida diária parece tomada por arroubos – talvez esteja passando muito tempo nas redes sociais- de certezas demais, absurdos demais. A coisa toda parece meio sem humanidade. Veja, não quero romantizar também a tristeza, como se eu fosse uma espécie de espectadora do lado de fora. Estou muito dentro. Mas, às vezes, é preciso ir para a terceira margem que Guimarães Rosa nos falou, em lindo conto, e deixou aberto para a imaginação. Então aqui, e de forma muito pessoal, digo que uma das minhas terceiras margens é o Piauí.

Sim, o Piauí, com 3.280.697 habitantes, localizado no nordeste brasileiro. Um dos estados mais pobres da federação e onde está minha família por parte de pai – a biológica e a adotiva, igualmente amadas- e também onde vivi muitos anos. Ainda mais especificamente, um bairro na periferia de Teresina. lá há uma espécie de tesouro ou amuleto que tem o poder imediato de devolver meu chão e colocar as coisas em perspectiva. Duas senhorinhas, a mais nova acaba de fazer 87 anos e a mais velha comemorou 90 no ano passado. Falo da minha avó e de sua irmã, que estão sempre numa alegria sem fim. Minha avó, cria de Santo Amaro da Purificação, criou 6 filhos em condições adversas e com pouquíssimos recursos, só foi alfabetizada aos 50 anos e, depois de se desquitar já idosa, aprendeu que adora um forró no sábado à tarde.

Sem coitadismo, sem história triste, apenas a vida acontecendo. Também não quero romantizar o ruim, mas precisa dar o contexto do que me faz pensar naquela casinha quando quero colocar os pés no chão novamente. Na última visita, ouvi uma conversa entre essas senhorinhas sobre a Pretinha, prima que veio da Bahia e há muito não viam, e o Cabelo Duro, mecânico da rua de baixo, excelente para todos, e que, infelizmente, estava muito doente. Imaginem o fuzuê desses apelidos se a conversa fosse ouvida por alguém apto a julgar pessoas por blocos e não por contextos e complexidade?

Todo esse papo de que as suas escolhas são políticas tem uma bela explicação na qual poderia me prolongar muitíssimo, envolve ciência política, história e alguma filosofia. Também é excelente a refutação. Mas, aqui da terceira margem, e olhando com cuidado – nem quero me aprofundar nos autores -, o que vejo são pessoas complexas e histórias individuais sendo reduzidas a um grito em massa. Falei do cancelamento a Gilberto Gil em outro texto e um argumento que me chamou a atenção foi: casamento é um ato político e ele, um homem negro, ter optado por casar-se com uma mulher branca seria, portanto, auto-ódio e desprezo pelo seu grupo. Meu Deus. Escolher com quem vai dividir a vida já é tão complicado, não bastasse ter de lidar com a adaptação ao outro universo que alguém é, ainda é preciso passar pelo crivo da tribo, da turba. Só amar não basta.

O que você come, o que você veste, todos os seus interesses mundializados e completamente abstraídos. Por que se preocupar com quem está ao seu lado se as baleias marrons da Nova Guiné estão precisando de você a-go-ra? Por que decidir por seus valores e construções pessoais se você pode repetir o discurso geral? Gosto de falar no aspecto do indivíduo, mas isso já começa a ser reclamado por quem entende de política. O século XXI parece ser sobre performance e não fatos políticos. Vi essa conclusão em interessante texto que discorria sobre Emmanuel Macron, presidente francês.

Muito bem, Gil, Macron, discussão política…. e o Piauí? O Piauí é o lugar para o qual viajo, mais mental que fisicamente – principalmente morando perto do poder e trabalhando com política, o exercício de rir de algumas coisas e lembrar que a minha raiz é aquela. Não só as motivações políticas me fazem remeter a essas senhorinhas, mas os atos do dia a dia. Melhor do que qualquer remédio para não enlouquecer. Não há nada de fantástico ali – pelo menos a olhos nus -, um show de obviedades, mas aparentemente o óbvio, cada dia mais, precisa ser dito.

A construção da personalidade e dos atos que em conjunto movem o mundo é feito no ordinário, no rotineiro, e para a nossa geração super estimulada: no entediante. E talvez, em um primeiro olhar, esse lugar que descrevo como um tesouro seja exatamente isso. Mas é lá nas discussões simples, nas conclusões óbvias e no olhar mais puro de quem já viveu muito, que consigo pensar sobre essa maluquice que tem sido a vida, que todas as grandes teorias sociais e antropológicas, tão complexas, materializam-se para os meus olhos, pois veja bem, isso é muito individual. Aos seus olhos, as rugas de Dona Maria passariam incólumes, para os meus, são casa. Por isso, dedico ao meu pedaço de chão, no Piauí, minha terceira margem.

E você? Onde fica sua terceira margem? Onde está seu chão?

Simone Mayara é Analista Política no Instituto Livre Mercado. Pode ser encontrada no Instagram.

Simone Mayara

Analista política, é especialista em Direito Internacional e Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. Atualmente é sócia na consultoria de diplomacia corporativa Think Brasil.