Peixe Grande: a verdade, a mentira e entre elas a imaginação
Aconteceu uma vez, quando abri os olhos. De uma caixa muito pequena brotava uma luz pálida e fraca, quase não se conseguia ver o que estava lá dentro. Foi então que, movida e comovida, apertei um frágil botão e, de dentro daquela convidativa caixinha, saltaram centenas, milhares de flores solarmente amarelas e todas elas brilhavam e dançavam, frescas e úmidas, aos acordes do vento e aos comandos da luz.
Vindas de muito longe, de uma terra que não conheço, todas aquelas flores jamais chegariam intactas às minhas mãos se não fosse aquela pequena caixa e toda sua mágica, feita de engrenagens muito pequenas e muito importantes. Por isso, a caixa de luz branda e toda a sua relevância: para enviá-las e para mantê-las – perfeitas, vicejantes e perfumadas – durante o percurso. E, assim, permanecerão sempre amarelas e sempre vivas e sempre exalantes e incríveis, não por alguma obra antinatural – pois, se há algo destinado a seguir, invariavelmente, o seu curso de viver e morrer é a natureza –, mas pelo fazer ao qual me dedico, nesse exato momento: as flores existem, de novo e agora, porque estou contando sobre elas.
São minhas porque estão nessas linhas que comecei a escrever. É dessa, e de nenhuma outra forma jamais inventada, que nos apropriamos daquilo que não se pode reter ou conter: as flores reais são e serão minhas porque eu as reivindico ao fazer delas a razão de ser e de se contar uma história.
Peixe Grande é um filme sobre histórias. Um filme sobre a forma que escolhemos para relatar o que nos acontece e sobre como essas escolhas, palavra por palavra, dia após dia, acabam por se tornar a nossa própria vida. Na busca para entender melhor o pai, para saber “a verdade” sobre ele, o personagem Will Bloom confronta os discursos fantásticos que ouviu desde a infância: obcecado por conhecer o ser humano por traz da narrativa, por despir o homem auto inventado com quem ele dividiu a mesa das refeições, a casa, a família e o laço de sangue, por toda sua vida. Will era o filho ávido por olhar nos olhos do sujeito que controlava e puxava e soltava cada corda e cada cenário de um maquinário fabuloso, o pai fábrica de passagens incríveis que, tal como fazia o grande mágico de Oz na Cidade das Esmeraldas, derramou seu carisma e intangibilidade sobre toda autoconstrução de William como indivíduo.
Durante o filme, acompanhamos tanto a escalada fantasiosa das histórias de Edward, o pai, quanto a jornada do filho ao encontro da dissolução de um dilema: a oposição entre o que era mentira e o que era verdade na vida daquele grande peixe. É delicado e tortuoso falar sobre essa dicotomia, atualmente. Vivemos em uma pós-verdade que está envenenando nossas relações sociais e políticas e que se avulta e assombra, para minha tristeza, também sobre o tipo de arte, literatura e cinema que se pode produzir e fazer nascer nesses tempos tão cravejados de realidades insólitas e tão pouco dignos da nossa confiança.
Mas, tal como o filho que enxergava a biografia do pai como um iceberg – a verdade sendo a pequena parcela visível de sua persona e toda a parte submersa como as mentiras que ele, supostamente, tentava esconder – podemos estar sendo enganados também na forma como queremos chegar à verdade crua do que ansiamos saber para continuar vivendo e resistindo. Podemos estar, na sensível estação atual das coisas, mergulhando cada vez mais para o fundo, quando, na verdade, tudo que poderia nos iluminar e esclarecer está lá em cima, pendurado nas estrelas.
Enquanto a pós-verdade envenena os fatos, editando e deformando uma pequena fração de verdade e fazendo com que ela se transforme em uma massa enorme e amorfa de mentiras úteis e sórdidas, são a ficção e a fantasia que atuam no sentido inverso dessa intenção. É a imaginação que pode nos servir de antídoto quando o cozido que a pós-verdade prepara em um enorme caldeirão de confusões só usa, em sua receita, uma pequena pitada de verdade e, como enganoso recheio, colheradas muito fartas das nossas mais incontroláveis emoções.
São elas que vão dar o sabor, a textura, o cheiro e o nome do prato envenenado que nos será servido à la mode e à exaustão. De olhos vendados pela raiva, pelo medo, pela intolerância, pela humilhação e pelo desejo de pertencimento, engolimos todas as histórias deformadas como quem saboreia um prato cujo cheiro lembra a verdade, mas cuja digestão, rançosa e lenta, nos imobiliza e nos indigesta com o peso e os arrotos azedos da mentira. Assim, vivemos nessa pastosa azia cotidiana: ao nos agarrarmos ao tempero que tem pitadas de verdade, somos cada vez mais empanturrados pela mentira passada e podre. É um banquete às cegas que, muito provavelmente, nem sequer escolhemos provar. Somos levados pela fome, pela barriga que ronca e que se contorce insatisfeita, pelo cotidiano desnutrido de explicações honestas e de sentido.
O exercício da ficção, da imaginação e da fantasia também toma a verdade como nota de coração das suas pretensões. Porém, ao acrescentar a essa base toda a alquimia dos símbolos, das criaturas incríveis, das terras longínquas e estrangeiras que nos lembram do cheiro e da comida de casa, dos fabulosos encantamentos que saltam em frente aos nossos olhos – mesmo sendo invisíveis – é exatamente nesse ponto, ao também nos contar sobre o que não é fato nem realidade, que tudo isso nos liberta. Ao invés de nos vendar os olhos e ao invés de nos agarrar pelo fígado ela nos presenteia com um infinito e encantado banquete, onde podemos provar dos cheiros que nos lembram de nossa cor preferida, onde podemos sentir o gosto das palavras ao lê-las sobre o papel, onde podemos sorrir com os olhos ao imaginar que alguma história ou algum conto nos fez nascerem flores dos fios dos cabelos, mel na ponta da língua e asas nas solas dos pés.
Peixe Grande é uma ode à imaginação e à infinita capacidade humana de se inventar à sua própria vontade e criação – através da linguagem e da contação de histórias. O que me levou a rever esse filme tão saboroso e fragrante, depois de quase 20 anos que o assisti pela primeira vez, foi exatamente a necessidade de me sentir livre – mesmo que somente dentro dos meus próprios pensamentos, mesmo que apenas por um par de horas – da opressão das narrativas de desesperança, desgoverno e mentira.
Imaginar não é mentir. Imaginar é colorir, perfumar, confeitar e enfeitar a lapela da verdade com flores. É descolar dos fatos a verdade para que ela seja algo maior, mais inspirador e fortificador, para que ela seja atemporal e inquebrável, para que ela seja, ao mesmo tempo, individual e coletiva. Nesse período governado por mentiras, nosso mais infalível e fiel amuleto e elixir encantado vem do incrível, único e insuperável mecanismo humano de inventar, contar e acreditar em suas próprias histórias de autonomia, criatividade, beleza e, principalmente, esperança.
A verdade sobre a passagem que abre esse texto: eu recebi, pelo celular, um vídeo de um campo de flores amarelas, muito parecidas com as mostradas em uma das passagens mais singelas do filme. A gravação foi enviada por um amigo que mora em um país distante que eu nunca visitei. A caixa mágica que transportava e preservava as tulipas contra a ação do tempo é uma invenção fantástica e, por isso, ela é muito mais encantadora e comovente do que a realidade. Engrandecer, enaltecer e fantasiar a partir da verdade é o devir do artista. Distorcer a verdade e manipular os fatos é ação daqueles que nos querem entalados e fartos e fracos e desgostosos demais para reagir e regurgitar todo esse mingau requentado de autoritarismo mentiroso e podre. Imaginar é nutrir-se. Imaginar é se negar a engolir.