Bemdito

Quando é melhor esquecer

Estudo mostra que nossas memórias se tornam menos vibrantes e detalhadas com o tempo, e somente a essência central é preservada
POR Yanna Guimarães
The persistence of memory (Salvador Dalí)

Muitas vezes a nossa memória nos deixa na mão de uma forma que a gente não acredita. Com idade avançada ou não, quem não já se pegou parado no meio de casa pensando no que estava indo fazer? E aquela história do seu passado que você contou várias vezes, mas um belo dia alguém contestou que não tinha acontecido exatamente daquele jeito que você lembrava? Pois bem, uma equipe de pesquisadores das Universidades de Glasgow e Birmingham conseguiu nos dar algumas respostas sobre quais informações são retidas na memória ao longo do tempo e quais partes se perdem. 

O estudo, publicado no fim de maio, na Nature Communications, demonstrou que nossas memórias se tornam menos vibrantes e detalhadas com o tempo e somente a sua essência central é preservada. Além disso, essa “essencialização” das nossas memórias é potencializada quando, frequentemente, nos lembramos de nossas experiências recentes. Embora as memórias não sejam cópias exatas do passado – o lembrar é entendido como um processo altamente reconstrutivo -, os especialistas sugeriram que o conteúdo de uma memória pode mudar cada vez que a trazemos de volta à mente. 

No entanto, exatamente como as nossas memórias diferem das experiências originais e como elas são transformadas ao longo do tempo, até agora provou-se difícil serem medidas em ambientes de laboratório. Mas para esse estudo, os pesquisadores desenvolveram uma tarefa computadorizada simples, que mede a rapidez com que as pessoas podem recuperar certas características das memórias visuais quando é pedido para que elas lembrem. Os participantes aprenderam pares palavra-imagem e mais tarde foram solicitados a lembrar diferentes elementos da imagem quando acompanhados pela palavra. 

Por exemplo, os participantes foram solicitados a indicar, no tempo mais rápido possível, se a imagem era colorida ou em escala de cinza (um detalhe perceptivo), ou se mostrava um objeto animado ou inanimado (um elemento semântico). Esses testes, sondando a qualidade das memórias visuais, aconteceram imediatamente após o aprendizado e também após um atraso de dois dias. Os padrões de tempo de reação mostraram que os participantes eram mais rápidos para lembrar elementos semânticos significativos do que os perceptuais superficiais.

Julia Lifanov, principal autora do estudo da Universidade de Birmingham, explicou que “muitas teorias da memória assumem que, ao longo do tempo, e à medida que as pessoas recontam suas histórias, elas tendem a esquecer os detalhes superficiais, mas retêm o conteúdo semântico significativo de um evento. Imagine relembrar um jantar que ocorreu antes da existência do Covid-19 com um amigo. Você percebe que não consegue se lembrar da decoração da mesa, mas sabe exatamente o que pediu. Ou se lembra da conversa com o barman, mas não da cor de sua camisa”. 

Já a professora Maria Wimber, autora sênior do estudo da Universidade de Glasgow, acrescenta que o padrão para a lembrança de elementos semânticos significativos demonstrados no estudo indica que as memórias são tendenciosas para um conteúdo significativo em primeiro lugar. “Nossas memórias mudam com o tempo e o uso, e isso é uma coisa boa e adaptável. Queremos que nossas memórias retenham as informações que provavelmente serão úteis no futuro, quando encontrarmos situações semelhantes”. 

A pesquisa fornece uma ferramenta para estudar mudanças desadaptativas, por exemplo, no transtorno de estresse pós-traumático, onde os pacientes frequentemente sofrem de memórias intrusivas e tendem a generalizar excessivamente essas experiências para novas situações. Também é relevante para a compreensão de como as memórias de testemunhas oculares podem ser influenciadas por entrevistas frequentes. O estudo também demonstra que testar a si mesmo antes de uma prova fará com que as informações significativas permaneçam por mais tempo, especialmente quando seguidas por períodos de descanso e sono. 

Tudo isso também nos dá esperança de que toda essa lama em que nos encontramos parecerá menos suja com o passar do tempo. Talvez nos lembraremos de que eram muitos os absurdos dessa Era. Mas a nossa memória provavelmente descartará detalhes como o fato de um servidor do Tribunal de Contas da União (TCU) ter inserido um documento com informações distorcidas sobre a Covid-19 dentro do sistema do órgão e esses dados terem sido usados pelo presidente para, sem prova, sugerir supernotificação de óbitos pela pandemia no Brasil. Uma de muitas aberrações que se tem visto nos últimos dois anos. A minha memória, que nunca foi muito boa, já tem me ajudado – mas aquela ajuda para sofrer menos, não para deixar de cobrar que tudo seja esclarecido e punido. 

Yanna Guimarães

Jornalista e mestre em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova de Lisboa.