“Se a colonização ficou no passado, por que ainda matam tantas lideranças indígenas?”
Yssô Truká é professor, formado em Licenciatura Intercultural pela Universidade Federal de Pernambuco. Eu o conheci por meio das minhas orientandas de mestrado no Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos (PPGD) da UFPA, Paloma Sá e Giovanna Faciola.
Truká é aluno de mestrado do professor Ricardo Dib no PPGD, e tem interesse nas nossas pesquisas sobre estado de exceção e o pensamento de Giorgio Agamben. Por isso, foi convidado a participar do meu grupo de estudo sobre Uso dos corpos (Agamben).
No debate com o grupo, contemporaneamente às atuais manifestações indígenas em Brasília, contra a PL 490/2007, convidei-o a dar uma entrevista sobre tal conjuntura política, nestes tempos pandêmicos, quando os povos indígenas são uma das vítimas centrais de um genocídio ainda em curso desde a colonização.
Ricardo Evandro // Alison Truká, antes de tudo, gostaria que falasseum pouco sobre si, sua história de militância em defesa dos povos indígenas brasileiros e sua formação.
Yssô Truká // Meu nome é Yssô Truká (Alison dos Santos). Nasci na Ilha da Onça, no leito do Rio São Francisco (Velho Opará), fonte de vida sabedoria e luz, Ilha/Terra e Território. Foi onde nasceu o pequeno Curumim, guerreiro filho do vento e bom irmão, Yssô Truká, em 1º de julho de 1960. Sou Cacique do povo Truká de Orocó (PE), na terra indígena Truká Tapera. E membro de uma linhagem de sucessores líderes do povo Truká, da nação Proká, atualmente residente na aldeia Porto Apolônio Salles, no continente pernambucano, na terra indígena Truká tapera – Antigo Aldeamento da Missão de Santa Maria na antiga (CORIPOIS). Militante do movimento indígena nacional, sou atuante nas áreas de libertação territorial, educação escolar indígena, políticas afirmativas e acesso ao Ensino Superior para as representações indígenas. Atuo também na militância exclusiva do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena – (SASI-SUS).
Ricardo // Quais são as reivindicações dos indígenas nos protestos que têm ocorrido em Brasília?
Yssô // Não ao PL 490, que vai contra o que determina a Constituição Federal Brasileira de 1988. O Projeto de Lei 490/2007, elaborado pela bancada ruralista, propõe que a demarcação das terras indígenas seja feita através de leis. Além disso, o projeto também prevê a abertura das terras indígenas para o garimpo, que está destruindo cada vez mais a Amazônia Brasileira.
Ricardo // Quais são os problemas possíveis que podem ocorrer se for aprovado o Projeto de Lei n. 490/2007, sob relatoria do Deputado Arthur Maia (DEM-Bahia)?
Yssô // O PL traz uma mudança brutal nos termos de demarcação de terras indígenas. Isso já estava previsto no texto original do projeto. O substitutivo apresentado pelo relator Arthur Oliveira Maia (DEM-BA) é mais nocivo ainda, pois vai de encontro aos princípios estabelecidos pelo artigo 231, da Constituição Federal de 1988. Esse artigo assegura que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. O texto do PL 490 já está incluído no texto do Marco Temporal, que será julgado em 30 de junho de 2021, pelo Supremo Tribunal Federal. Eu diria que, embora aprovado pela CCJ da Câmara dos Deputados, é inconstitucional. E vamos provar isso. Estamos nos preparando para realizar mobilização em todo o país.
Ricardo // Qual é a atual condição das vidas indígenas no Brasil? Especialmente neste período de pandemia?
Yssô // Vivemos grandes desafios com a campanha de vacinação contra a Covid-19 aos maiores de 18 anos. Ainda temos por vacinar todos os que têm abaixo de 18 anos. Nem todos os trabalhadores nas terras indígenas estão vacinados e isso representa um grande risco, além dos nossos parentes, que, por inúmeras razões, estão vivendo em contexto urbano e ainda não foram vacinados, tendo o seu direito totalmente ignorado – como bem narra o Walter Benjamin, segundo o texto de J-M. Gagnebin em o Cacos da História , Judith Butler, Caminhos Divergentes, Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo, e Giorgio Agamben em Estado de Exceção e Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua.
Ricardo // Por falar no filósofo alemão Walter Benjamin, lembro que ele escreveu certa vez sobre como “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’, no qual estamos vivendo, é a regra geral”. E em outro texto seu, Benjamin pôde falar sobre o frade dominicano Bartolomeu de las Casas, chamando-o de “lutador heróico de uma causa perdida”. Ele se referia à luta do frade para denunciar a barbárie cometida pela colonização espanhola no século XVI. Benjamin lembra que a colonização tinha como justificação teórica — e eu diria que também teológica — a de que a América seria “terra sem dono”. Sobre isso, acredita que, hoje, no Brasil, há alguma relação, algum nexo, entre essa discussão sobre a demarcação de terras indígenas e a nossa história colonial?
Yssô // Fico a pensar se de fato a invasão europeia já acabou. Antes da invasão, vivíamos livres, alegres, sem invasão dos nossos territórios. Tínhamos problemas de pequena proporção, mas éramos os verdadeiros donos do nosso território. Se o nosso continente não tivesse sido invadido, não teríamos perdido tantas vidas abatidas pelos chamados civilizados. Possivelmente, teríamos uma grande população de maioria indígena. Afinal, quem mata sem razão e apenas por ganância é bárbaro ou civilizado? Se a colonização tivesse ficado no passado de fato, como se fala, por que ainda se matam tantas lideranças indígenas? Por que criminalizam outras? Por que não regularizar as terras indígenas? Por que negar os direitos de vida dos povos indígenas? Por que tanta briga e relutância contra um processo que historicamente é nosso direito? É importante esclarecer que o estado colonial continua em ação e seu projeto genocida também. As coisas têm mudado lentamente e as ferramentas de luta têm sofrido modernização. Gosto dos textos do Walter Benjamin. Mas, em função da época, os textos retratam também a realidade atual do estado negacionista. Discordo da sua posição sobre a questão das causas perdidas. Nem sempre ganhar é vencer. A vitória é a resistência, persistência e existência. Para nós, povos indígenas, lutar é educar os nossos curumins, lutar é construir a resistência, é construir a nossa história, e não viver a história dos invasores. É resistir. Lutar para a construção de uma escola de formação de grandes guerreiras e guerreiros. É formar o povo do futuro. O mundo dos povos indígenas não é esta forma de democracia predatória. Vivemos a vida social da consensualidade entre nós. Esse processo em que vivemos traz medo aos invasores derrotados do nosso continente.
Ricardo // O que acha que os brasileiros e brasileiras não-indígenas podem aprender com a forma de vida indígena e a busca pela “Terra sem males” (na mitologia guarani, trata-se do mito de uma terra onde não haveria fome, doenças ou guerras)?
Yssô // Precisamos não confundir uma terra sem males com o bem-estar social e o acúmulo de riqueza capital. Os povos indígenas estabelecem códigos de convivência com a nossa Pacha Mama (mãe terra). A terra sem males é aquela em que você proporciona ao outro o que você pode construir para você e sua família: cuidar do espírito e da alma da terra e ver a terra como sua mãe, o espaço de vivência como seu cosmo. O espaço territorial, como fonte de vida, vida plena, conhecimento da funcionalidade dos seus elementos sagrados e cosmológicos. É sobre estar bem com a natureza sagrada, cuidando dos seus elementos cosmológicos e da espiritualidade do ser, do nascer, do viver e do ser plantado no cosmo.