Uma chave para abrir o tempo
É possível colecionar imagens que nos façam amanhecer?
Iana Soares
ianascm@gmail.com
Entre Mombaça, Brasília, Maranguape, Maracanaú e Fortaleza, Joana já morou em mais de vinte casas. Só estive em 34 dos 80 anos de idas e vindas, mas arrisco que foi mais feliz em Maranguape. Eu fui. Lembrei desse tempo enquanto descia as escadas do prédio onde moro e senti a mistura de feijão de corda com cheiro de roupa lavada. Quando eu chegava na casa de Joana e Luiz, nos 90, abria as portas de um armário e recebia aquela brisa. Na parede, Charles Chaplin e João Paulo II me observavam escolher a toalha dos próximos dias. Luiz colocava discos para tocar, enquanto Joana fazia o almoço.
Para chegar, dobrava na esquina do Mesa Farta à esquerda, descia uma ladeira comprida, pegava à direita, passava em frente à bodega onde me endividava por maluquinhas e caramelos, depois direita de novo. Muro baixo, portão pequeno e um caminho de grama. Na rua sem saída, fiz amizade com duas irmãs que moravam na última casa, do lado direito. Elas tinham uma estante alta com com uma aglomeração de brinquedos chiques dentro de caixas. Só poderiam sair do confinamento quando o que estava ao alcance das mãos fosse ruína, como se o tempo não passasse por tudo e envelhecesse também as meninas que, em breve, não amariam as bonecas. No entanto, não havia revolta: nos enrolávamos em faixas de papel higiênico enfeitadas e desfilávamos na varanda.
Guardei o tempo nos olhos e, agora, faço o caminho de volta para os dias em que tomava banho de mangueira e usava Aseptol. Comia bolo quente, bolacha torradinha, bebia guaraná em casco de vidro. Ajudava a desgrudar o arroz que ficava pregado na panela para separá-lo antes de guardar no depósito e, ainda hoje, como um pedaço porque escuto Luiz me dizer que essa é a melhor parte. Depois vieram muitas outras casas, mas perdi os mapas.
Na penúltima, em Maracanaú, só moravam Joana e os retratos. Luiz, que infartou mesmo com tantos 12 por 8 anotados na caderneta, não alcançou a casa da Rua 116. Um dia inventei que, como o pai da Adélia Prado, Luiz pintou as paredes de alaranjado brilhante para que ela estivesse constantemente amanhecendo. Pendurado na imagem ao lado de Joana, vestida de branco, cintura fina, o Luiz que não conheci observava a casa que tinha muita cor, mas tinha também tristeza. Aquela fotografia já havia morado no quarto do casal em Maranguape e deve ter sido um dos meus primeiros “Era um vez uma moça e um rapaz… “.
O tempo alterou a rota. No próximo final de semana, Joana estará de casa nova. Seremos vizinhas. Já não pegarei a estrada, o anel viário, não passarei em frente à Ceasa. Agora só preciso dobrar à direita na Jaime Benévolo e andar por três ou quatro quarteirões. Levarei bolo, farei café e ajudarei a lavar os lençóis. Haverá alguma alegria nova. Se eu me entristecer, por um instante, abrirei as portas com a chave que guardei para que entrem a saudade, a menina e os meus avós, Luiz e Joana.
Iana Soares é jornalista e fotógrafa. Está no Instagram.