Violência de gênero na ditadura e os tropeços da memória brasileira
Caso Inês Etienne Romeu é símbolo da falha sistemática em trazer memória, justiça e verdade para mulheres vítimas de violência de gênero na ditadura
Geórgia Oliveira Araújo
georgia.araujo17@gmail.com
Em fevereiro de 2015, tive a oportunidade de conhecer em Santiago (Chile) o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, dedicado à memória das vítimas do regime ditatorial comandado por Augusto Pinochet entre 1973 e 1990. Poucos meses antes, no Brasil de dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade entregava seu relatório final, com três volumes e mais de 3 mil páginas sobre as violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado na repressão aos opositores do regime ditatorial brasileiro. Naquele momento, nunca poderia ter imaginado que, no Brasil, a ditadura civil-militar que durou 21 anos seria objeto de admiração por um presidente da República.
Brasil e Chile foram países que lidaram de forma muito diferente com a transição da ditadura para a democracia: enquanto aqui a Lei de Anistia conseguiu estabelecer legalmente uma esfera de esquecimento e impunidade de todos os crimes cometidos pelo Estado Brasileiro; no Chile, a Justiça decidiu que a Lei de Anistia do país não poderia ser aplicada aos casos de violações de direitos humanos, o que permitiu a persecução penal de dezenas de agentes do Estado. Em ambos os países, comissões dedicadas à apuração dos crimes cometidos e das vítimas mortas e seviciadas apontaram a existência de métodos extremamente cruéis de tortura que, para as mulheres, incluía regularmente o estupro ou outras formas de violência sexual*.
Uma das mulheres que atuaram na oposição ao regime militar brasileiro, tornando-se símbolo da luta pelo reconhecimento das violações de gênero, foi Inês Etienne Romeu. Ex-guerrilheira e única sobrevivente de uma casa de detenção ilegal em Petrópolis, Inês iniciou sua militância contra o regime por meio da organização sindical e foi uma liderança nacional destacada na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Em 1971, quando já se desligava do movimento, Inês foi sequestrada e presa em São Paulo e levada ao Rio de Janeiro, mais especificamente à “Casa da Morte”, onde passou 96 dias detida ilegalmente, sofrendo com torturas, humilhações e estupros. O local foi um centro clandestino de tortura e assassinatos, que funcionou na década de 1970 na cidade de Petrópolis (RJ), com apoio do Centro de Informações do Exército (CIE) e do DOI-CODI, contando com a colaboração de militares e civis para a manutenção da propriedade.
As sevícias eram parte da estratégia de cooptar os prisioneiros e as prisioneiras para que denunciassem os companheiros, mas a crueldade empregada pelos torturadores com as mulheres detidas ia muito além: a violência sexual era realizada de forma sistemática, aumentando ainda mais a vulnerabilidade e o sofrimento das militantes presas. Além do estupro e de outros tipos de abuso, torturas pensadas especificamente para mulheres grávidas – para provocar o aborto ou a esterilização – eram práticas comuns em centros de detenção. Inês identificou vários agentes envolvidos em seu aprisionamento e narrou com detalhes os abusos sexuais que sofreu durante os três meses em que permaneceu em cativeiro, violações que a fizeram tentar suicídio quatro vezes, todas elas impedidas por um médico residente na “Casa da Morte”, que a deixava viva para que continuasse sendo torturada.
As tentativas de levar a julgamento agentes do estado que participaram da repressão e cometeram torturas tiveram pouquíssimo êxito no Brasil, principalmente após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 2010, reconheceu como constitucional a Lei de Anistia, dificultando ainda mais a responsabilização jurídica dos torturadores. As movimentações institucionais e jurídicas pela persecução penal dos agentes da repressão, que já eram escassas, tornaram-se ainda mais exíguas e insuficientes, sendo frequentemente barradas pela decisão do STF e deixando claro que o ambiente de impunidade em relação aos crimes cometidos contra presos políticos seria a regra na justiça brasileira.
Em que pese a importância da Comissão Nacional da Verdade, desenvolvida durante o governo da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) – que também foi presa política e vítima de torturas -, muitos homens e mulheres faleceram sem ver uma resposta concreta do Estado Brasileiro a esse capítulo da história nacional. Mesmo após condenações do país na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), nos casos da Guerrilha do Araguaia e do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, o Brasil continua percorrendo um perigoso caminho, não só de esquecimento, mas de exaltação do passado ditatorial.
Inês faleceu em 2015, mas a tentativa de trazer à justiça os responsáveis pelas violações por ela sofridas ganhou novo fôlego com a decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região de tornar réu o sargento Antonio Waneir Pinheiro de Lima, conhecido como Camarão, acusado de sequestrar, manter em cárcere privado e estuprar Inês em 1971. Camarão foi caseiro da “Casa da Morte”, colaborando para a manutenção do local e participando das dinâmicas de tortura ali realizadas. Na denúncia, é possível encontrar o relato de Inês sobre as duas vezes em que foi estuprada por Camarão, com conhecimento de outros agentes da repressão, e sobre as formas com que o acusado tentou escapar às investigações, já no curso do processo. A decisão é uma vitória, inclusive em relação à sentença de 2017, na qual o magistrado de 1° grau havia rejeitado a denúncia do Ministério Público Federal (MPF), citando Olavo de Carvalho para desqualificar a proteção aos direitos humanos de presos políticos da ditadura.
Se há um fantasma que ronda o Brasil, esse fantasma é o de um passado autoritário extremamente mal resolvido, que ameaça o presente e se manifesta com uma frequência assustadora. Reverências públicas a torturadores e ao Ato Institucional 5 (AI-5), ameaças de fechamento do STF, manifestações por intervenção militar e intimidações de que “com uma canetada é possível virar ditador” têm se tornado cada vez mais frequentes e descaradas, principalmente no mais alto escalão do governo. No Brasil, não houve justiça e nem transição: permanecemos presos à herança do autoritarismo, que fere de morte qualquer pretensão de democracia com que sonhamos. Vivemos em um país que tem um pacto com o esquecimento, não com a memória.
*No Chile, a Comissão Nacional de Prisão Política e Tortura recebeu o testemunho de 3.399 mulheres, correspondendo a 12,5% de todos os declarantes. Quase todas as mulheres afirmaram que foram objeto de violação sexual, e 316 disseram ter sido violadas. Mais informações podem ser lidas no informe produzido pela Comissão e publicado em 2005. No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade contou com um grupo de trabalho específico para sistematizar as violências de gênero cometidas por agentes da ditadura, contando com um capítulo específico no relatório final para reunir os depoimentos de homens e mulheres que sofreram violência sexual. O relatório pode ser acessado no site da CNV.
Geórgia Oliveira Araújo é colaboradora do Bemdito e pesquisadora na área de violência de gênero. Está no Instagram.