Bibliotecas desfeitas
Tinha muita insegurança de me apresentar como artista, quando Érica me perguntou quanto custava a tela em acrílica que eu havia pintado, fotografado e publicado num antigo blog. Ela comprou a tela e disse que a levaria para sua nova casa, distante daqui. Tratava-se do retrato de um jovem italiano que eu havia beijado no carnaval dias antes de terminar com meu namorado na época. Disso, ela nada sabia. No retrato, o rapaz, cujo nome não lembro, estava de costas e o cabelo descia pelos ombros em largos dreads que pareciam serpentes.
A situação em que vendi minha primeira tela ocorreu há mais de quinze anos. Foi também quando conheci a produção de Érica Zíngano, que me inquietava por tensionar zonas entre a literatura e as artes visuais. No projeto Cidade à revelia, ela negociou com o órgão da Prefeitura, responsável pelo transporte urbano, para inserir versos nos painéis eletrônicos erguidos sobre as avenidas, aqueles mesmos que apresentam horário, data, temperatura e informações sobre o trânsito. No Projeto EU, ela foi à beira de uma lagoa dentro da cidade, pousou as letras “E” e “U” sobre o espelho d’água e as deixou ir embora, como uma despedida de si.
Eu cursava a graduação em Artes e já frequentava com entusiasmo os principais sebos da cidade. Dos sebos, havia um preferido, que ficava bem próximo do centro cultural onde eu assistia de terça a domingo performances musicais, peças de teatro, exposições e mostras de vídeo. Nesse sebo, eu ia direto para a seção de poesia e lá se deram pequenas descobertas que ainda hoje me ajudam a compor as estantes da casa. O fato curioso é que quase todos os livros que passei a adquirir no sebo traziam na folha de rosto a assinatura de Érica.
Com o tempo, aquela assinatura foi se configurando numa espécie de selo de qualidade. O fato de saber que aqueles livros haviam feito companhia a Érica reforçava o sentimento de que seriam, também para mim, bons amigos. Mas queria entender por que Érica havia se desfeito de sua biblioteca tão valiosa.
Após anos morando fora, ela enfim retornou à cidade onde ainda resido. Então passei a encontrá-la por acaso na portaria do prédio, no parquinho da praça, na entrada do cinema – quando ainda era possível ir ao cinema -, até que um dia conversamos mais e contei-lhe da relação de início aparentemente aleatória que fui estabelecendo com boa parte do seu acervo de poesia.
Ela disse que precisou se desfazer inteiramente de sua biblioteca três vezes: duas vezes pelas bandas de cá e outra vez do outro lado do Atlântico. É verdade que o objeto livro pesa. Numa mudança, as caixas de livro tornam-se um problema. Por isso, Érica teve de se desapegar deles em diferentes momentos, num processo de luto que também podia elaborar algum gozo a partir da melancolia. Há aqueles que consomem equipamentos eletrônicos em grande quantidade, uns que consomem sapatos, alguns consumidores de vasos de plantas, outros de comida e aqueles, talvez mais raros, que consomem livros.
Ao se desfazer de sua biblioteca pela terceira vez, Érica entendeu que estava se desfazendo também de um modo de vida. Mudou-se para um país que não falava sua língua e, nesse recomeço, necessitava de energia. Era importante deslocar-se mais leve, não carregar tanta coisa, deixar o peso dos livros distribuído em pequenas livrarias que dariam a cada um desses objetos rumos imprevistos. Foi quando realizou um projeto no qual despedaçou o livro escrito por ela durante a pesquisa de mestrado e pôs as páginas em dezenas de envelopes que foram encaminhados a diversas pessoas.
De volta à cidade na qual se desfez pela primeira vez de sua biblioteca, Érica tem revisitado o sebo e me confessou que comprou um livro que ela mesma havia vendido tempos atrás. Disse que o gesto foi algo como deparar-se com uma outra Érica, de quem havia se esquecido as principais feições, e perceber linhas de vida mudando de pele e dando voltas sobre elas mesmas.