Bemdito

Mistério da renúncia

Os efeitos de importantes renúncias na Igreja Católica da última década: a do Papa Bento XVI e, recentemente, do cardeal Reinhard Marx
POR Ricardo Evandro
Foto: Arquivo Vaticano

Duas renúncias importantes aconteceram na Igreja Católica nos últimos 10 anos. A renúncia do Papa Bento XVI e, mais recentemente, a renúncia da condução da Arquidiocese alemã pelo Cardeal Reinhard Marx.

É muito bem sabido que a Igreja de Roma está em crise há anos em função dos escândalos envolvendo denúncias e processos por abuso sexual praticados por padres. Possivelmente, esses motivos estão por trás da renúncia de Bento e, certamente, da renúncia de Marx.

Segundo o próprio site de notícias do Vaticano, “Marx havia pedido ao Papa para poder deixar a condução da Arquidiocese alemã por causa do escândalo de abusos na Alemanha e da resposta por ele julgada insuficiente do episcopado.”.

Sobre esta mais recente (e importante) renúncia, no seu artigo, Fios do tempo. A Igreja Católica em crise (2021), o sociólogo brasileiro Carlos Eduardo Sell explica que o Cardeal Marx liderou o enfrentamento desta crise (e de suas consequências), materializada, por exemplo, pelo fato de que, “apenas no de 2019, 272.771 fiéis católicos deixaram de pagar impostos para a Igreja ou, na prática, abandonaram a sua religião”.

E o enfrentamento dessa crise, na Alemanha, deu-se pelo chamado Caminho Sinodal. Tanto na Alemanha quanto no Brasil, na região amazônica, ocorreram estes Sínodos, que são uma espécie de assembleia, por meio da qual, democraticamente, bispos e outras lideranças católicas decidem sobre os rumos da Igreja nas suas localidades, mas desde que haja ratificação pelo Papa.

Sob liderança de Marx, Sell explica que as duas reuniões da assembleia sinodal na Alemanha, constituída pela primeira vez com números iguais entre bispos e leigos, resultaram nas seguintes proposições: “maior participação dos leigos nas instâncias decisórias da igreja, o fim do celibato sacerdotal, a permissão de acesso feminino ao sacerdócio, bem como uma completa revisão da moral sexual da igreja.”.

Mas diante do aparente fracasso dos anseios do Sínodo alemão, Marx, então, pediu ao Papa a renúncia do cargo, alegando, em carta publicada no último dia 4 de junho, no site de sua Arquidiocese, que nos encontramos em um “ponto morto”, mas que também tem a “esperança pascal” de que isso se torne um “ponto de virada”.

Sobre isso, quero propor neste ensaio uma leitura sobre a renúncia como um mistério, ou, no seu sentido original, um drama, um processo, lembrando, com isto, da já citada renúncia de Bento XVI e do modo como o filósofo italiano Giorgio Agamben refletiu sobre este gesto do Papa, no seu texto Mistério do mal (2013). Nesse pequeno livro, Agamben elogia o ato de renúncia de Bento XVI, lembrando que a crise pela qual a Igreja tem passado, mais do que uma crise de legalidade, é também uma crise de legitimidade.

Quanto à crise de legalidade, nós a entendemos bem: padres, médicos, militares, empresários, mas também políticos, como presidente da República, senadores, etc., têm violado sistematicamente suas competências, seus limites legais, criminais, de direitos humanos. Abuso, corrupção, prevaricação, execução sumária, atos de racismo, violação de código de ética, de honra, etc., são a nossa crise de legalidade –  ao menos no Brasil. 

Resta, então, entender que tal crise não se reduz à ilegalidade política. Há, em verdade, uma crise outra. Sobre isso, Agamben diz que “[o]s poderes e as instituições não são hoje deslegitimados porque caíram na ilegalidade; é mais verdadeiro o contrário, ou seja, que a ilegalidade é difundida e generalizada porque os poderes perderam toda a consciência de sua legitimidade.”.

Mas Agamben também diz que, por conta disso, não podemos achar que a crise se trata da falta de algo fundante da legalidade, como se a legitimidade fosse um valor simplesmente superior. Pois, em verdade, “legitimidade e legalidade são duas partes de uma única máquina política que não só nunca devem ser reduzidas uma à outra, mas devem permanecer sempre, de alguma forma, operantes para que a máquina funcione.”

Assim, essa bipolaridade da máquina (bio)política que opera sobre nossos corpos sempre funciona sobre a legalidade associada à legitimidade. Não podemos ter nenhuma ilusão de que um governo autoritário e genocida, por exemplo, seria possível sem legitimidade. Os exemplos históricos são muitos. Esse poder de morte tem sido feito com muito apoio popular. Por isso que o fascismo não é um excesso de legalidade, como se pode pensar, mas, sim, a ideia de que, uma vez legítimo, o líder pode tudo; como se a sua aclamação, sua “graça”, justificasse qualquer ato de ilegalidade.

Mas o importante a se dizer, aqui, é que, uma vez ilegítimo, no sentido de perda total da razão de se estar no poder, restando somente a vontade de mais poder, de se reter no trono, e sustentado por meio do fetiche da legalidade, da formalidade, da burocracia, do processo eleitoral e judicial, qual é razão para ainda se fincar neste lugar?

Quando o Cardeal Marx renuncia ao seu cargo, ele ousa reconhecer que não há mais razão para permanecer no controle dos instrumentos legais de poder a ele autorizado. Mas Marx não renunciou porque estes mesmos instrumentos simplesmente teriam perdido suas finalidades. É mais complexo ainda. A renúncia se deu porque o poder legal a ele conferido acabou por ter uma finalidade determinada: a de estagnar, dificultar, de reter o processo de mudanças que pretendia realizar.

Assim como, pela leitura de Agamben, Bento ousou colocar em questão o “mais antigo e significativo título de legitimidade”, também o Cardeal Marx ousou colocar em questão seu título de intermediador de mudança, de passagem (Páscoa), para confessar o seu fracasso e a sua culpa – que também são nossos, todos os dias, a cada segundo em que não abrimos a porta para o messias.

No último dia 10 de junho, o Papa Francisco, sucessor de Bento, rejeitou a renúncia do Cardeal Marx. E talvez este ato do Papa esteja de acordo com aquilo que Sell chama de “pirâmide invertida de Francisco”: insistir em ver o poder da Igreja como devendo ser algo que vem de baixo para cima, pois demonstra a confiança no seu amigo Marx.

Mas a rejeição de Marx à sua própria liderança do Sínodo da Alemanha, ainda sim, chama atenção, especialmente pelos seus motivos, pois foi feita em nome daquilo que ele mesmo, em sua Carta de renúncia ao Papa, chamou de “esperança pascoal”.

Sua renúncia é um ato de poder-de-não, de potência de não endossar a “mesmidade”, não contribuir para a estagnação do que era para ser o “tempo que resta”. Marx não endossa esta retenção do fim, da salvação.

Então, nesse sentido, por que nossos líderes ilegítimos e ilegais também não renunciam? Aliás, podemos nos perguntar: por que eu não faço o mesmo, renunciando, não a um cargo, mas a essa vida indigna de ser vivida, em pecado e em culpa, que não cessamos de nos imputar, para que possamos viver uma outra forma de vida?

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.