Bemdito

Violência psicológica: novo tipo penal traz desafios

Uma análise das expectativas possíveis para o novo crime
POR Geórgia Oliveira

Desde a sua criação, explorada no texto da coluna anterior, a Lei Maria da Penha trouxe definições importantes no que diz respeito à violência doméstica e familiar. Uma dessas definições é a articulada no artigo 7º da lei, que determina a existência de cinco tipos de violência contra as mulheres: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. 

Ao contrário da visão que associa violência apenas à agressão física, esse dispositivo da lei evidencia como as violações que atingem as mulheres em relações familiares e íntimas vão muito além do “bater em mulher” e podem se manifestar de diversas formas, muitas das quais nem sempre deixam marcas visíveis, mas causam prejuízo e adoecimento duradouro na vida dessas mulheres.

No último dia 28 de julho, foi sancionada a lei que torna crime a violência psicológica contra a mulher, definida no novo artigo 147-B do Código Penal como o ato de “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”. 

Coloco aqui a definição completa do tipo penal, que passa a ser punido com pena de reclusão de seis meses a dois anos e multa, para que possamos debater juntos dois aspectos fundamentais para a compreensão desse novo crime: a maneira como a Lei Maria da Penha é operacionalizada pelo sistema de justiça e os limites do Direito Penal na tarefa de enfrentamento à violência.

Uma questão importante para a compreensão de como os mecanismos e as instâncias derivados da Lei Maria da Penha funcionam é a noção de que a função da lei foi criar políticas públicas de combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres, e não criminalizar condutas. A legislação criou procedimentos que viabilizaram regras diferentes para o atendimento de mulheres em situação de violência, bem como mecanismos capazes de preservar a vida e a segurança dessas mulheres, como as medidas protetivas.

O único tipo penal presente hoje na Lei Maria da Penha é o de descumprimento de medida protetiva, fruto de uma alteração no texto da lei realizada em 2018. Com isso, quero chamar atenção para o fato prático de que quando uma mulher chega à delegacia para registrar um boletim de ocorrência contra o agressor, a classificação da conduta violenta é feita de acordo com os crimes que estão descritos no Código Penal, e não com base nos tipos de violência descritos no artigo 7º da Lei Maria da Penha.

Nessa “tradução” feita pela autoridade policial, a violência física será registrada, por exemplo, como lesão corporal, a violência sexual como estupro ou outro crime contra a dignidade sexual, a violência patrimonial como as condutas de dano, fraude ou subtração dos crimes contra o patrimônio, e a violência moral, como calúnia, difamação ou injúria. Não havia, até agora, uma forma de traduzir para uma conduta jurídica penalmente sancionada a violência psicológica, que muitas vezes era registrada nos boletins de ocorrência como crime de ameaça – este que, descrito pelo Código Penal como o ato de ameaçar alguém, de causar-lhe mal injusto e grave, não é apropriado para definir a complexidade de condutas que compõem a violência psicológica.

Na redação recém-sancionada, é possível notar que a definição de dano emocional é feita como prejuízo ou perturbação do pleno desenvolvimento da mulher e como ação que tenha como objetivo degradar ou controlar a expressão e autonomia da vítima, utilizando não apenas a ameaça, mas também o constrangimento, a humilhação, a manipulação, o isolamento, a chantagem, a ridicularização, a limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação da mulher.

Se, por um lado, a determinação de uma série de condutas que podem ser vistas como violência psicológica é importante para a caracterização precisa do crime, por outro, é possível questionar, como sempre faço, se a criação de mais um tipo penal não é apenas uma medida simbólica e punitivista, limitada pela função precípua do Direito Penal, que é a punição, e não o combate à violência.

De fato, não é a tipificação que vai causar alguma mudança ou diminuição nos casos de dano emocional enfrentados pelas vítimas de violência doméstica e familiar. A melhor expectativa é a de que a existência de uma definição penal para a violência psicológica possibilite mensurar esse fenômeno, bem como ajude mulheres a identificar esse tipo de agressão e buscar formas de romper o relacionamento, antes que a violência escale para situações mais severas. Mas essas são apenas expectativas que não podem ser mantidas cegamente diante do grau de revitimização enfrentado pelas mulheres no nosso sistema de justiça e ainda do nível de subnotificação que têm os crimes relacionados à violência de gênero.

Aplicações e impactos

É necessário saber como será a aplicação e o processamento do crime pelo sistema de justiça; precisaremos acompanhar de perto se as delegacias especializadas terão ou não condições de receber e encaminhar de forma correta as vítimas de violência psicológica.

Será necessário permanecer atenta a que tipos de prova serão utilizados em processos criminais por violência psicológica, para não onerar a vítima a atestar seu depoimento repetidas vezes, levando ao julgamento moral e à valoração da sua palavra contra a do acusado, ao mesmo tempo que se mantêm as garantias legais do devido processo. 

Será ainda importante pensar que impactos terá o novo crime para casos de violência psicológica que não ocorram em contexto doméstico ou familiar, tendo em vista que o artigo 147-B fala apenas de violência contra a mulher, podendo abarcar outros tipos de relacionamento que não aquele familiar ou íntimo, bem como outros tipos de autor ou autora da violência.

Precisaremos, ainda, atentar para quais outras políticas de atendimento serão destinadas às mulheres, fora dos espaços da delegacia e do Judiciário. Se a intenção do legislador e do Estado brasileiro é reconhecer o dano psicológico às vítimas de violência doméstica e familiar, bem como a outras pessoas atingidas por esse tipo de violência, é sua intenção também oferecer e expandir programas de acolhimento psicológico à vítima, principalmente aqueles oferecidos pelo SUS?

À semelhança do crime de perseguição, também recentemente adicionado ao Código Penal, a violência psicológica contra a mulher passa a normatizar um universo de condutas que, por falta de definição legal no âmbito criminal, deixava as vítimas desamparadas até mesmo do correto atendimento na esfera policial, sem mencionar a ausência de suporte por outras esferas estatais. Todos os questionamentos e as expectativas aqui apresentados, por mais jurídicos e normativos que pareçam, têm um impacto bastante concreto na maneira como é operacionalizado o atendimento das mulheres em situação de violência e também nos limites que a criminalização da violência psicológica vai enfrentar, se não acompanhado de medidas e políticas públicas que mitiguem a função meramente punitiva desse reconhecimento. 

Mais uma vez, nos encontramos na corda bamba entre a necessidade de reconhecer e nomear uma forma de violência que atinge sobremaneira as mulheres, e o risco de tutela e a revitimização de um sistema de justiça seletivo, desigual e preconceituoso. Quando saltaremos para outras formas de lidar com a criminalidade e a responsabilização por atos de violência?

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.