O discurso populista e a campanha permanente
O líder debochado faz chacota da pandemia e desrespeita as vidas perdidas para a covid-19
Monalisa Torres
monalisa.torres@uece.br
Todo discurso político tem como objetivo a conquista da opinião pública, a sedução do eleitor. Não por outro motivo, o processo de construção dos discursos políticos considera uma lógica dramatúrgica fundamentada em três bases: 1) a denúncia de um grande mal social que vitimiza o povo; 2) a identificação dos responsáveis; por fim, 3) a promessa de reparação do grande mal, que será oferecida a partir de certos valores (referência ideológica) e de meios específicos para sua realização (agenda política).
Orientado pela mesma dramaturgia, o discurso populista é centrado na figura do líder, o grande salvador. É num cenário apocalíptico, em que grandes vilões (as elites, o sistema político, etc.) operam, que o líder populista emerge, não apenas falando a língua do povo, mas encarnando a “voz do próprio povo” como seu único representante legítimo.
Nesse sentido, a conexão entre líder e massas é de ordem muito mais afetiva que ideológica. O líder populista está sempre em busca de manter a ilusão de que a “verdadeira mudança”, somente é possível graças e pelas suas mãos, está prestes a acontecer. A comunicação permanente com sua base é necessária para manter o elo afetivo que lhe garante legitimidade.
Na era da internet, essa comunicação permanente funciona como uma espécie de “plebiscito”, por meio do qual o líder populista se vê autorizado a falar ou fazer o que bem entender, já que vocalizaria a vontade do próprio povo. O seu poder, ainda que de pendor autoritário, estaria legitimado pelo próprio povo.
O discurso populista do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que marcou as campanhas em 2018, permanece seguindo esse mesmo roteiro.
Sem vocabulário rebuscado, filtros ou “papas na língua”, Bolsonaro foi ganhando fama, sendo conhecido por dizer aquilo que muitos sentem sem, no entanto, conseguir expressar. Seu palavreado grosseiro, sem nenhum decoro, suas críticas ácidas, muitas vezes em tom de deboche, foram capazes de mobilizar amplos sentimentos de identificação e produzir uma imagem de “autenticidade” e “sinceridade” num momento de profunda descrença em relação a políticos e partidos.
Prometendo uma mudança profunda na forma de fazer política, Bolsonaro foi eleito numa onda anti-establisment que varreu todo o sistema político brasileiro, alterando o quadro de forças partidárias que vinha se organizando desde meados da década de 1990.
Mas o governo Bolsonaro, parafraseando o cientista político Cláudio Couto, não passa de um “governo-movimento”. A ausência de uma agenda política clara e viável dá lugar ao discurso populista. É em torno dele que o presidente opera, numa campanha permanente “contra tudo que está aí”.
A passagem de Bolsonaro pelo Ceará na última sexta-feira (26) é um exemplo claro do seu modus operandi. Em meio à maior crise humanitária pelo qual o país já passou, com a marca de mais de 250 mil vidas perdidas para a Covid-19, o presidente passeou em carro aberto, dispensou a utilização de máscara de proteção individual, desrespeitou todas as medidas de distanciamento social e insuflou a população contra os governadores que, na ausência de uma coordenação nacional para o enfrentamento à pandemia, adotam medidas mais rígidas para controle do vírus.
Em discurso a dezenas de apoiadores em Tianguá (CE), afirmou: “o povo não quer mais ficar dentro de casa, o povo quer trabalhar, esses que fecham tudo e destroem empregos estão na contramão daquilo que seu povo quer”.
Enquanto brasileiros morrem aos milhares, hospitais colapsam país afora e vacinas não chegam em quantidade suficiente para imunizar sequer os grupos prioritários, o presidente debocha das medidas de isolamento social e afirma a “ineficiência das máscaras” (numa clara postura negacionista). Prefere atacar prefeitos e governadores, que cumprem seu papel, do que coordenar uma grande frente de combate à pandemia.
O Plano Nacional de Imunização não avança, a renovação do auxílio emergencial não saiu do papel, não há políticas públicas para as áreas mais críticas como educação e saúde. Mas, para Bolsonaro, mais vale mobilizar permanentemente sua base eleitoral, numa campanha infindável contra a “velha política”, contra as “esquerdas corruptas” ou ainda contra as instituições democráticas, que entregar políticas públicas reais.
Enquanto o povo morre, Bolsonaro não sai do palanque.
Monalisa Torres é professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC) e colunista do Bemdito. Pode ser encontrada no Instagram.