2020: O ano da micareta racial
Em tempos de espetacularização das lutas sociais, o combate ao racismo exige motivações maiores do que o medo do cancelamento
Izabel Accioly
mariaizabelaccioly@gmail.com
Estamos vivendo a pandemia do novo coronavírus há um ano. Muitos serviços foram paralisados, mudamos de planos e de hábitos, abandonamos rotinas. Entretanto, uma rotina, infelizmente, não se alterou: a morte violenta de pessoas negras. George Floyd, Miguel, João Pedro, Alberto, e tantos outros. Em comum, além da pele preta, eles têm o fato de terem perdido a vida de modo violento no ano de 2020. Além disso, suas mortes ganharam grande repercussão na mídia e nas redes sociais.
Quando perdemos uma pessoa negra de modo violento, nosso luto é entrecortado pela necessidade de provar que tais vidas eram relevantes, que eram pessoas amadas, que tinham família. Os protestos que ganharam as ruas no último maio clamavam: VIDAS NEGRAS IMPORTAM! Naquele momento, vivemos um período que Silvio Almeida chamou de micareta racial.
“Não adianta fazer dessa discussão que agora ganha força como se fosse uma espécie de antecipação do dia 20 de novembro ou então fazer um 13 de maio fora de época, como se fosse uma micareta racial. Temos que estar absolutamente preparados para entender o racismo em sua complexidade”, foi a fala de Silvio Almeida no programa Roda Viva em 23 de junho de 2020.
O que para os brancos é uma espécie de micareta racial, para nós, povo negro, é questão de vida ou de morte, é pelo que lutamos. Essa luta não pode ser acionada apenas em certas datas e muito menos de modo superficial. Nossas vidas não podem estar entre a espetacularização dos casos de violência e a invisibilidade das nossas dores. É necessário que seja feito um trabalho regular e consistente como, há décadas, os movimentos negros realizam.
Enquanto pesquisadora das relações raciais no Brasil e ativista negra, observo que o interesse de grande parte das pessoas brancas pela temática racial parte do medo. Conforme as pautas da luta antirracista foram tomando conta da mídia e dos debates públicos, em paralelo ganhava força o medo da “cultura do cancelamento”. Ser cancelado nada mais é que ser cobrado publicamente por falas e atos problemáticos. As redes sociais se tornaram o espaço em que cada um pode fazer ecoar sua voz, comunicar suas dores e indignações. É também neste espaço que os movimentos negros pressionam cada vez mais por transformações sociais.
Um exemplo disso foi o ocorrido na última segunda-feira, 1, ao assistirmos a apresentadora Ana Maria Braga falar, em rede nacional, que não sabia o que era branquitude, mencionar suposto “racismo reverso” sofrido por brancos e utilizar o termo racista “mulata”. Esta fala repercutiu bastante nas redes sociais, e, no dia seguinte, a apresentadora iniciou o programa com um pedido de desculpas e corrigiu o que afirmou na manhã anterior. Este é um exemplo de como, ainda de modo muito tímido, as pessoas brancas estão aprendendo a reagir quando seu racismo é apontado. É muito pouco, apenas um pedido de desculpas, mas em outros tempos isso teria passado em branco. É necessário que pessoas brancas se aproximem da pauta racial não pelo medo de serem “canceladas”, mas pelo desejo de viver em uma sociedade menos desigual.
O último ano foi marcado por muitas lutas e sinto que tivemos avanços quanto a amplificação do debate racial, entretanto, ainda há muito a conquistar. Em 2022 teremos a revisão da Lei de Cotas (PL 4.656/2020), além das eleições para presidente, governadores, deputados e senadores. É muito importante que existam conquistas na política institucional. Precisamos de pessoas negras ocupando esses espaços e de aliados brancos dispostos a contribuir para isso. Este é um trabalho a ser construído agora em 2021 por todos nós que ansiamos por justiça social.
Izabel Accioly é antropóloga, professora e pesquisadora das temáticas de relações raciais e branquitude. Está no Twitter e no Instagram.