Bemdito

Espero tua anarquia #1: A culpa de Deus

Reflexões sobre o pecado original, a recusa ao conhecimento e o estabelecimento da servidão
POR Jáder Santana
Foto: Pawel Janiak

Primeira parte de série sobre atualidade da filosofia anarquista reflete pensamentos basilares de Mikhail Bakunin sobre relações entre Deus e o Estado

Jáder Santana
jaderstn@gmail.com

Renegado pelos cientistas políticos e comentaristas de imprensa aos porões das utopias pueris, o pensamento anarquista é quase sempre visto como o primo rebelde das correntes progressistas. Poucos estão dispostos a refletir sobre o fim da autoridade e, mais que isso, a cogitar modos de revolucionar com tamanho fervor as bases da sociedade. No Brasil de Jair Bolsonaro, em pleno 2021, quando esquerda é sinônimo de gandaia e comunismo é outra palavra para crime, falar de anarquismo parece frivolidade consumada apenas pelo mais rasteiro dos pensadores. 

Nesta série especial em três partes, Bemdito se propõe a resgatar o pensamento anarquista desse campo da insignificância em que foi colocado desde meados de 1920, quando teve parte de seu corpo e mente assimilada pelo bolchevismo. Por puro preconceito, por acomodação geracional ou incompetência acadêmica, a esquerda – e também uma parte muito peculiar da direita, diga-se – dedicou-se a omitir elementos essenciais do anarquismo em nome de um equilíbrio ou maleabilidade política que, em muitos aspectos, pode ser colocado no centro da atual crise do pensamento progressista.

Dos argumentos teóricos e práticos de Mikhail Bakunin em meados do século XIX ao anarco-sindicalismo de Noam Chomsky no século XXI, há pensamentos potentes capazes de lançar luz sobre a crise político-econômico-social que vivemos. Questionar autoridades, em todas as suas instâncias e núcleos, do familiar ao federativo, é indagar nossa posição particular de subordinação – essa obediência é justificada ou resultado imposição? Acatamos por necessidade? Qual a origem dessa necessidade? É possível ampliar os limites de nossas correntes antes de rompê-las?

Mikhail Bakunin (1814-1876) tratava a ideia de livre-arbítrio como engodo. Para o revolucionário russo que influenciou de forma decisiva o movimento de trabalhadores em nível mundial, assumir a falácia que é o livre-arbítrio seria o passo inicial no caminho da evolução do pensamento político. A verdade é a seguinte: o homem não tem escolhas e está duplamente aprisionado – primeiro, fisicamente, naturalmente, pelo fisiologicamente herdado, e também socialmente, pela tradição e pela organização pública, econômica e social. “O homem é, desde o seu desenvolvimento e durante toda a sua vida, o resultante de uma quantidade inumerável de ações, de circunstâncias e de condições materiais e sociais”, escreveu. 

E se o conceito de livre-arbítrio pode ser questionado, o mesmo se dá com a ideia rasteira que a liberdade ocupa nas discussões casuais. Em seu lugar, deve-se compreender a liberdade como finalidade do progresso histórico da humanidade. A liberdade que não temos, mas almejamos. A evolução iniciada com o reconhecimento da não existência do livre-arbítrio segue, progressivamente, rumo a um ideal de liberdade que implica, também, em igualdade e solidariedade. Saímos de um estágio primitivo marcado pela animalidade e avançamos cronologicamente em etapas de regressão e conquistas – a escravidão, a exploração econômica, o capitalismo. 

Nesse aspecto, o pensamento de Bakunin se choca com o de Rousseau e os contratualistas. Para o primeiro, a liberdade não deve ser buscada no começo da história. É justamente o inverso: “liberdade é a negação progressiva da animalidade do homem e esse só pode libertar-se, como diz, em certo sentido, pelo uso da razão, conhecendo as leis naturais e agindo conforme esse conhecimento.” Fora dessa busca, dessa racionalização dos sentidos, a liberdade torna-se impossível. 

Mas essa negação da animalidade não está relacionada, em sentido estrito, à negação da natureza. Pelo contrário, a consolidação da liberdade exige a assimilação progressiva das leis que regem o natural, adequando-se a ação ao sentido dessas normas. O voluntarismo que caracteriza a ideia romântica da liberdade dá lugar à resignação perante o fato “de que a humanidade deve submeter-se às leis que regem a natureza.”

É conhecida a desconfiança de Bakunin em relação às religiões. Deus, em sua formulação de pensamento crítico, foi o primeiro tirano. Não sem ironia, o pensador se refere à Bíblia como “um livro muito interessante, e aqui e ali muito profundo” para em seguida escrever que “Jeová, de todos os bons deuses adorados pelos homens, foi certamente o mais ciumento, o mais vaidoso, o mais feroz, o mais injusto, o mais sanguinário, o mais despótico e o maior inimigo da dignidade e da liberdade humana.” 

Remontando-se aos dias que se seguiram ao ato de criação, associa a concepção de Adão e Eva ao estabelecimento de uma ideia inicial de escravidão e “capricho” do criador. Capricho, aqui, colocado no sentido de extravagância e teimosia. A liberdade do casal original, quase absoluta em seu cenário paradisíaco, encontra um único limite, os frutos da árvore do conhecimento. E com essa decisão inicial, Deus demonstra sua intenção de privar o homem, seu escravo, de toda consciência de si mesmo. O que ele quer é “um eterno animal, sempre de quatro patas diante do ‘Deus vivo’’, seu criador e seu senhor.”

Mas o estabelecimento de um senhor em posição de controle é seguido, naturalmente (e aqui já estão a agir os mecanismos de equilíbrio da natureza), pela chegada do “eterno revoltado, o primeiro livre-pensador e emancipador dos mundos”, ninguém mais, ninguém menos que Satã. E o que faz esse revolucionário baderneiro a não ser incutir na cabeça dos escravos originais a vergonha pela ignorância e pela obediência bestiais? É o demônio o inimigo da ordem, é ele que emancipa a recém-criada massa escrava, é ele que “imprime em sua fronte a marca da liberdade e da humanidade”. É ele que inicia nossa marcha secular em direção à utopia da liberdade. Agora, somos desobedientes e queremos o fruto da ciência. 

A problemática da ideia de construção de mundo a partir de símbolos cristãos é resumida, segundo Bakunin, na quintessência da teologia. Credo quia absurdum. Creio por ser absurdo. Erguemos cidades e sociedades baseadas na “estupidez triunfante da fé”, fazendo cessar qualquer iniciativa de discussão e desobediência. O cristianismo seria, assim, a “religião por excelência”, aquela que deixaria clara a essência de todo sistema religioso, uma complexa organização intelectual e prática elaborada sobre desejos de empobrecimento, escravização e aniquilamento da humanidade em proveito da divindade. “Deus sendo tudo, o mundo real e o homem não são nada. Deus sendo o senhor, o homem é o escravo.”

Mas, se até os escravos originais tiveram força de vontade suficiente para se rebelar contra seu senhor criador, como pode nascer no homem moderno, inteligente e instruído, a necessidade de crer no mistério teológico? Está de tal forma inscrita em nossa constituição biológica a necessidade de se submeter a um criador que é também juiz, senhor, salvador e amaldiçoador? Fomos feitos para a servidão?

A resposta, para Bakunin, é política. “O povo é mantido na ignorância pelos esforços sistemáticos de todos os governos que consideram isso uma das condições essenciais de seu próprio poder”. E se as tradições religiosas envolvem o homem desde a primeira idade, a subjugação do pensamento – a proibição do fruto da ciência -, é acelerada pelo sufocamento causado pelo trabalho cotidiano, pela privação do lazer, da leitura, dos estímulos que desenvolvem a reflexão. Ou seja, continuamos esperando pela ação apaziguadora de nosso juiz-senhor-salvador porque nos encontramos em tal situação de miséria econômica e social, intelectual e moral, que essa nos parece a única saída. Se somos incapazes de encontrar, por nossos esforços particulares, a justiça, a verdade e a vida eterna, só nos resta apelar e esperar por uma revelação divina. 

Porém, como bem chama atenção Bakunin, quem diz revelação diz reveladores. Se o diálogo entre criador e criatura estivesse estabelecido em um nível fundamental, se o poder estivesse concentrado em uma única entidade uniforme, haveria o inimigo único. Mas o estabelecimento da figura dos reveladores pelo cristianismo insere novo fator nessa equação já demasiado complexa. Messias, profetas, padres e legisladores inspirados e constituídos pelo criador: estabelece-se uma nova classe. Fraciona-se ainda mais uma relação que, se já era pautada pela diferença de poder, agora passa a ser mediada por uma nova classe superior de dominantes. “E esses, uma vez reconhecidos como representantes da divindade sobre a Terra, como os santos instituidores da humanidade, eleitos pelo próprio Deus para dirigi-la em direção à via da salvação, exercem necessariamente um poder absoluto”, escreve Bakunin. 

A nós, meras criaturas não escolhidas, porção inferior nessa pirâmide de três partes, só nos resta a obediência passiva e ilimitada, a recusa do fruto do conhecimento, “pois contra a razão divina não há razão humana, e contra a justiça de Deus não há justiça terrestre que se mantenha”. A ideia de um deus superior, criador e controlador implica na abdicação da razão e da justiça humanas. Devemos confiar cegamente em nosso líder e nas figuras que Ele escolheu para nos conduzir.

É nessa confiança desvairada que repousa a crueldade das religiões. E é em nome dessa ilusão que se derrama sangue, fluido que é signo da ideia de sacrifício, do eterno servilismo da humanidade ao desejo de dominação e vingança da divindade criadora ainda aborrecida pela desobediência original. E a melhor estratégia para justificar essa obediência irrestrita, essa imolação perpétua em nome da devoção original, é tratar o homem e tudo o que é humano como elemento perdido no delicado equilíbrio entre o bestial e o divido.

Deus seria o nome genérico de tudo o que é grande, bom, belo e nobre. O oposto disso é a animalidade, que pode ser representada por tudo o que há de mais vil e monstruoso. De um lado, o divino. Do outro, o bestial. A humanidade, equilibrada debilmente entre esses dois pólos – e aproximando-se por tendência natural ao inferior -, deve buscar a iluminação que o guiará até o belo. Mas Bakunin já enxergava, talvez como eco involuntário da cosmologia taoísta chinesa, que esses distintos elementos formam um único, “e que se os separarmos, nós os destruímos.”

Mais que isso, o pensador russo estabelece que a simples insinuação da ideia de senhorio é suficiente para estabelecer sério choque com a ideia de liberdade. O senhor, afinal, por mais liberal que queira se mostrar, jamais deixa de ser senhor, e sua existência implica necessariamente a servidão do que está abaixo dele. Traça ainda um paralelismo de causa e efeito para justificar nossa liberdade: a existência de Deus está atrelada à escravidão do homem; mas, se o homem pode e deve ser livre, Deus, portanto, não existe.

Em um dos trechos mais deliciosos de seu pensamento escrito, sendo traído por algum moralismo justificável para aqueles meados do século XIX, Bakunin aponta três soluções – duas fantásticas e uma real – para escapar dessa fome intelectual e física. “Os dois primeiros são o cabaré e a igreja; o terceiro é a revolução social. Essa última, muito mais que a propaganda antiteológica dos livres-pensadores, será capaz de destruir as crenças religiosas e os hábitos de libertinagem do povo; crenças e hábitos que estão mais intimamente ligados do que se pensa. Substituindo os gozos simultaneamente ilusórios e brutais da orgia corporal e espiritual pelos gozos tão delicados quanto ricos da humanidade desenvolvida em cada um e em todos, a revolução social terá a força de fechar, ao mesmo tempo, todos os cabarés e todas as igrejas.”

Em pensamento atualíssimo e que poderia ser reproduzido na íntegra em manuais de correntes progressistas, Bakunin defende que o antigo pode, e deve, ser questionado, que tradição não é sinônimo de justiça. Em seu pensamento, a antiguidade de uma crença, longe de provar alguma coisa em seu favor, deve, ao contrário, torná-la suspeita. A razão para essa desconfiança é óbvia. Se atrás de nós está nossa animalidade, a representação perfeita da condição de nossa escravidão, e se diante de nós tempos a possibilidade e a utopia de nossa humanidade, por que olhar com tanto afinco para o passado? 

“A luz humana, a única que pode nos aquecer e nos iluminar, a única que pode nos emancipar, tornar-nos dignos, livres, felizes e realizar a fraternidade entre nós, jamais está no princípio, mas, relativamente, na época em que se vive, e sempre no fim da história”. Em seguida, adverte, “E se nos é permitido, se é mesmo útil, necessário nos virarmos para o estudo do nosso passado, é apenas para constatar o que fomos e o que não devemos mais ser, o que acreditamos e pensamos, e o que não devemos mais acreditar nem pensar, o que fizemos e o que nunca mais deveremos fazer.”

Em seus escritos críticos ao pensamento teológico e à formação de estados de dominação fundados na religião, Bakunin encontra espaço para louvar a ciência, colocando-a em diálogo direto com sua defesa de que a liberdade se fundamenta no profundo conhecimento das leis naturais e na reprodução mental, refletida e sistemática dessa natureza. “Fora dessa autoridade exclusivamente legítima, pois ela é racional e conforme à liberdade humana, declaramos todas as outras autoridades mentirosas, arbitrárias e funestas. Ao não reconhecer outra autoridade absoluta que não seja a da ciência absoluta, não comprometemos de forma alguma nossa liberdade.”

Bakunin chega a propor em suas reflexões procedimentos práticos para a transição entre esse servilismo baseado no medo e a solidificação do conhecimento científico. Fala de escolas de emancipação nas quais toda a educação da criança está fundada “sobre o desenvolvimento científico da razão, não sobre a fé; sobre o desenvolvimento da dignidade e da independência pessoais, não sobre o da piedade e da obediência; sobre o culto da verdade e da justiça e, antes de tudo, sobre o respeito humano que deve substituir, em tudo e em todos os lugares, o culto divino.”

E aqui, curiosamente, quando discorre sobre novos procedimentos de educação infantil, o velho subversivo encontra justificação para o assentamento legítimo de uma autoridade: o professor, o mestre, peça fundamental para o estímulo ao desenvolvimento da inteligência. “Mas como o desenvolvimento de todas as coisas, e por consequência da educação, implica a negação sucessiva do ponto de partida, esse princípio deve enfraquecer-se à medida que avançarem a educação e a instrução, para dar lugar à liberdade ascendente.” Em outras palavras, a autoridade do educador deve naturalmente transformar-se em independência do educado. “Toda educação racional nada mais é, no fundo, que a imolação progressiva em proveito da liberdade, onde essa educação tem como objetivo final formar homens livres, cheios de respeito e de amor pela liberdade alheia.”

“Numa palavra, rejeitamos toda legislação, toda autoridade e toda influência privilegiada, titulada, oficial e legal, mesmo emanada do sufrágio universal, convencidos de que ela só poderia existir em proveito de uma minoria dominante e exploradora, contra os interesses da imensa maioria subjugada, Eis o sentido no qual somos realmente anarquistas.”

Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. Está no Instragam e Twitter.

Leia as outras partes da série
Espero tua anarquia #2: Casa no campo, rocks rurais
Espero tua anarquia #3: Expandir a jaula

Serviço

Deus e o estado
Mikhail Bakunin
132 páginas
Editora Hedra, 2011
Preço: R$31,50

Revolução e liberdade
Mikhail Bakunin
182 páginas
Editora Hedra, 2010
Preço: R$32,40

Textos anarquista
Mikhail Bakunin
149 páginas
Editora L&PM, 1999
Preço: R$17,91 (ebook)

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.