Bemdito

Há esperanças, mas não para nós

A insurgência está à espreita e dela depende a entrada do verdadeiro Messias, em missão de resgate do país do futuro
POR Ricardo Evandro

A insurgência está à espreita e dela depende a entrada do verdadeiro Messias, em missão de resgate do país do futuro

Ricardo Evandro S. Martins
ricardo-evandro@hotmail.com

Stefan Zweig ficou famoso porque publicou um livro com o título que acabou por se tornar uma das alcunhas do país que tinha visitado em plena Guerra Mundial: Brasil, um país do futuro (1941). Entre muitas descrições maravilhadas pela beleza natural do Rio de Janeiro – e entre os elogios ao que ele chamava de “mistura livre e sem entraves”, chegando a dizer que, aqui, havia “a total equiparação entre negros e brancos, morenos e amarelos” – Zweig, austríaco de origem judaica, fantasiava um país em contraste ao ideal de “raça pura” em que a Europa vivia à época, e do qual fugia. Em uma curiosa passagem, ele chega a comentar que, enquanto isso, “nas casas das colônias alemães de Santa Catarina poderia se encontrar pendurado o retrato de Adolf Hitler”.

Dessa visão sobre o Brasil, incorporada pelos próprios brasileiros e brasileiras, o que há de comum é a perspectiva temporal sobre o futuro: “E quem vive neste país escuta o farfalhar vigoroso das asas do futuro”, diz ainda Zweig. Mas a temporalidade com a qual esses estrangeiros veem o Brasil talvez não seja exatamente a mesma da perspectiva geral dos brasileiros e das brasileiras. Sim, é do futuro que se trata, mas a tonalidade afetiva sobre o que está por vir talvez seja muito mais a de uma espera, de uma esperança. Esperamos que esse futuro finalmente possa chegar, e com isto, a espera se encerre junto com a própria ideia de futuro e de qualquer sentimento de esperança.

Assim, este não é um texto sobre esperança, mas sobre a necessidade da sua falta. Comumente se associa estar esperançoso com algum sentimento feliz, que venceria a tristeza, ao finalmente se chegar onde se quis. Mas é preciso se dizer o contrário. O estado de espera é profundamente triste; é estar angustiado pelo futuro que não vem. Daí talvez se possa melhor entender como Paulo Prado tenta destruir o preconceito muito comum sobre a luminosidade no Brasil. Em Retratos do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira (1928), Prado escreve sobre a tristeza ibérica dos nossos colonizadores, legada ao brasileiro, explorado e escravizado, e sobre como o Romantismo do Brasil resume bem esse sentimento: “Entre nós, o círculo vicioso se fechou numa mútua correspondência de influências: versos tristes, homens tristes; melancolia do povo, melancolia dos poetas.”.

Mas algo mudou neste tempo triste, neste tempo de espera. A tristeza e a angústia das nossas afinidades, que, por muitas vezes, elegem em comunhão outros sujeitos tristes, aceleraram a temporalidade do Brasil de hoje, quando nos aproximamos cada vez mais rápido das 300 mil mortes pela pandemia do Covid-19. O tempo acelerou, contraiu-se – “irmãos, o tempo ficou curto”, como diz Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios. A cada dia de recorde de mortes, parecem ter acelerado os dias, mas não em direção ao futuro feliz para o qual rumaria o Brasil, segundo Zweig. A velocidade dos dias é rumo à morte, ao genocídio, ao fim. O nosso fim. Enquanto isto, ao mesmo tempo, há a morosidade para que a economia deste sofrimento, destas mortes, encerre-se, finalmente.
Estamos, assim, diante de um lapso temporal. Nem há um ato econômico genocida de solução final, nem um ato econômico de dissolução final das instituições, as quais buscam reter, por meio do dispositivo do estado de exceção, ou de sítio – que, segundo Benjamin, “é a regra” –, a economia genocida. Então, o que fazer neste tempo que resta, acelerado, entre o tempo da espera e o fim do tempo?

Sobre isto, no seu A Igreja e o reino (2009), o filósofo italiano Giorgio Agamben diz que este tempo restante é “o tempo que o tempo leva para terminar”, a própria “experiência do tempo do fim”; e “esse tempo não é outro tempo, situado em um alhures improvável ou futuro.”. Em outros termos, o tempo que resta é o tempo presente. Apesar de rápido e encurtado, é a única chance que temos para agir porque é o tempo onde – ou, melhor, quando -, podemos ter experiência do fim, antes mesmo do fim inexperienciável. Por isto, diz Agamben, “a escatologia não é, nesse sentido, nada além, de uma transformação da experiência das coisas penúltimas”. Assim, este é o momento em que podemos mudar, dar outro uso as coisas, e viver de outras maneiras; pois este tempo não é para amanhã, “é o contrário, [é] o único tempo real, o único tempo que podemos ter. Fazer experiência desse tempo implica uma transformação integral de nós mesmos e de nosso modo de viver”. Pois não há tempo por se esperar.

Ainda com a sua Primeira Carta aos Coríntios, dando continuidade à passagem sobre o encurtamento do tempo, Paulo fala que há uma exigência messiânica para que se viva como se não se vivesse ordinariamente: “Chorosos, como os não chorosos; os alegres, como os que não estão alegres; e os compradores, como os que não possuem [nada]”. Trata-se de viver uma outra forma de vida, subvertendo os usos que damos às coisas, à natureza (amazônica), às mercadorias, ao direito, ao processo judicial, à ciência, às relações humanas, às nossas afinidades eletivas. E este pode ser o chamado, a vocação messiânica do Brasil, não como “um país do futuro”, mas sim como um país do tempo de agora, no qual, como dizia Benjamin, “todo instante é a pequena porta pela qual o Messias entra”.

Logo no início de uma de suas anotações do seu diário de sua viagem na América Latina, no dia 27 de julho de 1949, Albert Camus falava sobre como o Brasil seria um “edifício corroído cada vez mais de baixo para cima por traças invisíveis.” e, assim, “um dia o edifício desabará, e todo um pequeno povo agitado, negro, vermelho e amarelo espalhar-se-á pela superfície do continente, mascarado e munido de lanças, para a dança da vitória.”.

Por fim, com esta citação do diário de Camus, queria encerrar este ensaio, dizendo que este “um dia”, de Camus, é hoje, sem esperas, sem esperanças no amanhã; e que, por meio desta defesa, proponho uma subversão da aparente frase melancólica que Franz Kafka teria dito ao seu amigo, Max Brod: “Há esperanças, mas não para nós”. Não para nós, não podemos esperar para se insurgir. O Messias só virá quando não for mais necessário, só virá um dia após a sua chegada, não virá no último, mas depois do último dia.

Ricardo Evandro Martins é doutor em Direito e professor da Universidade Federal do Pará. Está no Instagram.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.