Minha filha não é mais aprendiz, é um olhar cúmplice
Sobre o choro em oração ao miserável e real espírito de um tempo
Jamieson Simões
jamrsimoes@gmail.com
Minha filha devia ter uns 9 anos e era um sabadão daqueles de sol e movimento. Decidi levá-la ao centro da cidade e consolidar alguns aprendizados que considero importantes para a sua sobrevivência. Estaciono o carro sempre o mais distante possível, de modo que, caso necessário, eu possa deixar o local sem grande congestionamento e empreenda a fuga sem grandes dificuldades. Deixamos o carro ali perto das “caixa d’água” e seguimos:
– Filha, qual a regra de ouro em viagens e deslocamentos?
– As duas mãos sempre livres, papai!
– Caso você fique perdida ou desorientada aqui no centro, qual é o procedimento?
– Procuro seu amigo na rua São Paulo. Ele vai me oferecer dinheiro e deslocamento seguro.
– E caso você tenha uma emergência feminina?
– Sua amiga no 4º andar daquele prédio na sala 404 vai me oferecer absorvente, roupa ou qualquer coisa que eu precisar…
– E caso você esteja sendo seguida ou importunada?
– Vou ao restaurante na praça do Ferreira. Chamo o garçom e digo a senha. Ele vai quebrar as pernas de quem eu apontar.
– Quanto tempo eu levo pra chegar em qualquer lugar da cidade?
– 38 minutos, papai. Até lá, eu ponho o pé no quadril do agressor e enfio a caneta no fígado ou pescoço. Quando o senhor chegar, resolve o resto…
A garota aprende rápido. Mantê-la viva é minha única herança. Ela adora a vida que tem e precisa continuar assim. Chegamos no Passeio Público, almoçamos, e ela vai brincar, a olhar as estátuas e o mar. Conto umas Histórias sobre a cadeia pública – agora chamam de Emcetur- e já é hora de voltar.
– Filha! É hora de voltar. Vou vendar os olhos e você me guia de volta até o carro. Confio em você. Me avise, caso se sinta ameaçada. Faça o sinal combinado na minha mão.
Partimos em direção ao estacionamento. Ela vai confiante. Se for esperta, traça uma linha reta e, em 25 minutos, estaremos na outra ponta do centro da cidade. Não vejo nada, mas reconheço as esquinas pelo movimento e pelo vento. Minha mão vai no ombro dela que, sutilmente, coloca os dedinhos perto dos meus. Não segura minha mão, mas toca suavemente. Eu abro um sorriso ao lembrar que a mão dela já foi menor e mais redonda. Mas volto rapidamente os sentidos para perceber cada passo dela rumo ao destino combinado.
Ao chegarmos na Praça do Carmo (conheci pelo cheiro de pastel e outros salgados), o alarme toca nos meus dedos. É o combinado em sinal de perigo ou ameaça. Ela disparou com seus dedinhos o toque combinado, dois apertos rápidos na mão direita. Num impulso, tiro a venda dos olhos e faço a varredura para identificar e neutralizar a ameaça inimiga. Ali está ela. Seios secos da fome. Era um corpo-mulher envolvido em trapos, pele e ossos. Uma criança dormindo o sono da fome em cima de um papelão. Outra criança no colo da mulher, pendurada no peito sem leite, os olhos choravam, mas não havia som nem lágrimas. Atônito, não soube o que dizer, nem fazer. Queria dizer que comprei uns salgados e dei alguma quantia pra saciar aquela fome. Queria dizer que busquei encaminhamento no Centro POP. Queria dizer que fiz qualquer coisa. Mas caminhamos em silêncio. Cúmplices. Chegamos ao estacionamento e choramos, abraçados e desesperados. Choramos nossas dores. Choramos nossa miséria. Choramos a ameaça contra toda dignidade humana. Naquela mulher e naquelas crianças, o destino de toda a sociedade fortalezense. Aquela foi nossa oração. Foi tudo de mais sincero que pudemos oferecer, nos importamos e nos deixamos afetar.
Jamieson Simões é um corpo-negro no mundo com toda potência que isso implica. Está no Instagram.