A estupidez do demônio e a esperteza dos vaga-lumes
O reforço dos vínculos comunitários e a fé na solidariedade são as melhores estratégias para resistir à guerra
Glória Diógenes
gloriadiogenes@gmail.com
O secular maniqueísmo cai bem em tempos de guerra. A doutrina que afirma a existência de um conflito entre o reino da luz e o das sombras propaga-se na mesma velocidade da pandemia. O caminho do meio, o jogo dialético dos opostos, a temperança, tudo parece se evaporar na tensão constante entre vida e morte. Para além da esfera pública, do jogo da política, dualidades invadem também a vida cotidiana.
Liguei semana passada para uma amiga e, paralelamente à nossa conversa, ouvi a voz de sua filha, a perguntar, insistentemente, por algo. Sugeri então: vai ver o que ela quer. A amiga segredou baixinho: “Mulher, é que agora, quando liga alguém, quer logo saber – é do bem ou do mal? Ela pegou essa mania estranha”, diz a mãe. Respondo: ela e quase todo o povo brasileiro. Estamos diante de um extensivo duelo cuja arma mortífera parece ser invisível, e cujos atiradores acionam letalidades sem mexer um dedo sequer. Diferente de uma bomba, de um tiro de canhão, não se sabe como o projétil certeiro é acionado e quem é o alvo. Parece ficção, mas não é. Diante da morte de milhares de pessoas, o comandante da guerra faz crer que não há nada a temer. Mira o sangue derramado sob a máscara da ira, da indiferença, ri. O gozo do olhar diante da sombra dos mortos. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.
Darth Vader, o “lado escuro da força” da saga Star Wars, diante do último dos Jedi, seu filho, Luke Skywalker, diz – “se ao menos você pudesse conhecer o poder do lado sombrio”. O fascínio de quem gera a morte move-se pelo próprio vazio de vida. Veste-se de armadura, de um corpo inexistente, zomba dos que sentem demais. Autointitula-se mito, ironiza os que têm fome, sede, os que adoecem, os que morrem sem remédio e alento. O “lado escuro da força” é denominado de demônio por algumas religiões, por outros de fascista à frente de sua máquina totalitária, ou de genocida, na cruel compulsão de gerar morte.
Dentro da gélida armadura de aço, o “lado mau” saboreia o gosto da tragédia. Entra em êxtase quando corpos se avolumam sem vida em carros frigoríficos. Imagina que se manterá no pódio do poder, se imobilizados, ameaçados de não respirar, os vivos permanecerem em zonas de apagamento. Vocifera, fala alto, cospe e pragueja em vírus verbais: idiotas”, otários, “gente de mimimi”, povo de “um país de maricas”. Muitos mortos? Nada a ver com isso, “não sou coveiro”.
Você enxerga na noite escura?
Enquanto isso, milhões de “idiotas”, animados, como diz Clarice, pelas “vantagens de ser bobo”, ganham vida, sem que ninguém desconfie. O que “nóis tem é nóis” do Emicida, por mãos inumeráveis, propaga-se feito vaga-lumes. Diante do genocídio na Itália, provocado pelo fascismo, Pasolini revela a força dos “bosques de fogo” nos momentos de exceção, entre brechas, seres luminescentes, erráticos, intocáveis, resistem. Sobrevivem nas noites sem lua.
Padre Júlio Lancelloti, protetor dos difamados, caluniados, perseguidos, na paróquia São Miguel Arcanjo, bairro da Mooca (SP), fica ao lado da população de rua. Enfrenta pregos e a mão de ferro do poder. Profissionais do Instituto Butantã, por vezes, à revelia do governo, envidam todos os esforços na criação e disponibilização de imunizantes.
Não precisa ir longe. O projeto de transferência de renda (R$ 180,00 por mês), “Ser Ponte”, desenvolvido em Fortaleza, por meio da doação das mais diversas pessoas, atende centenas de mulheres que vivem em comunidades marcadas pela vulnerabilidade. A Casa da Sopa (grupo espírita) mantém uma rede de apoio à população de rua de Fortaleza, buscando fornecer alimentação (400 refeições por dia), água potável, acesso a banheiros, itens de higiene e orientação sobre como lidar com a Covid-19. O Coletivo Rebento, formado por médicos do Ceará, organiza o Manifesto Médicos em defesa da Ética (com mais de mil assinaturas), apontando a necessidade urgente de uma saída humanitária para a crise da pandemia. Milhões de pessoas no mundo, no Brasil, para além do espetáculo ruidoso do demônio, do genocida, bordam retalhos no tecido da vida.
Alguns amigos e amigas têm me dito que estão esgotados, exaustos, famintos de esperança no futuro. Este artigo é uma flecha, um disparador da memória do que somos, do que podemos. O Darth Vader do século XXI (nem vale a pena proferir seu nome), bem menos inteligente, anseia exatamente por isso, que desistamos de enxergar potências. Pois então, amplie a lista. Vamos lembrar de tudo, de todas as guerrilhas a favor da vida. Essa será nossa cotidiana insurreição.
Deixar-se ver. Os pirilampos não desaparecerão diante do espetáculo do horror. A senha é: tatear caminhos no escuro. Minúsculas asas acendem e apagam, fachos de luz no fogo das resistências.
Glória Diógenes é doutora em Sociologia e professora da UFC. Está no Instagram.
Serviço
A sobrevivência dos vaga-lumes
Didi-Huberman
160 páginas
Editora UFMG, 2011
Preço: R$ 30