Quem tem medo de Cardi B?
Por que ouvir duas mulheres cantando sobre “boceta molhadinha” incomoda tanto?
Humberto Pinheiro
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No ano passado, que poderia ser 1916, ou 1858, ou há pouco mais de dois séculos, uma música incomodou, indignou, revoltou o mainstream moral. Isso aconteceu não por uma indevida confusão entre estética, política e moralidade, mas exatamente pela impossibilidade de separá-las. Todo acontecimento artístico é uma intervenção que pode acomodar ou não formações, relações e interesses de comportamento e de afeto. Toda arte é desejo, inclusive quando não se assume ou não é assumida como uma coisa ou outra, quando mais reverte do que revela quem a “produz” e quem a “consome”. Não há um lugar específico para o que é uma canção ou um poema, porque é sempre um emaranhado de tempos, representações e forças. Porque é sempre um nó de posições, de disputas, como as que tentam rejeitá-los ou deslegitimá-los como militância e imoralidade, quando menos de crime e patologia, sobretudo quando se trata de quem diz ou quem é dito nas letras e nas rimas.
Diante da música WAP, das rappers Cardi B e Megan Thee Stallion, o comentarista político Ben Shapiro nega que seja o caso de tratar as mulheres como “seres humanos independentes e completos”. Para ele, uma música que traz uma voz feminina falando de excitação, lubrificação vaginal e sexo deve ser uma preocupação medicinal. Tanto que sua crítica seguiu informando o diagnóstico da consulta que ele fez ao médico da sua esposa: “vaginose bacteriana, infecção por fungos, tricomoníase”. Shapiro foi e é uma legião que ao saber que uma mulher pediu “um balde e um esfregão para essa boceta bem molhadinha” (“bring a bucket and a mop for this wet-ass pussy”) tratava e trata esse pedido como uma urgência clínica, mesmo que esse convite esteja na forma de um rap. Depois de escutar a letra da Cardi B, Shapiro ligou para o ginecologista.
Ele é a continuidade atualizada da história do controle da sexualidade feminina. Sempre uma caça contra quaisquer interesses e práticas das mulheres por um sexo que não estivesse no seu uso matrimonial ou reprodutivo. Essa perseguição tentou e tenta se disfarçar (para continuar) em ideias de natureza e cultura, ou algo em meio a elas. O corpo da mulher foi o investimento dessa cumplicidade entre uma “naturalidade” da qual teríamos uma “sociedade” ou uma “tradição” da qual seriam algo como uma “obviedade”. Portanto, não seria “natural” ou “óbvio” Cardi B e Megan Stallion cantarem o que cantam, porque seria querer o que canta, cantar o que quer. Seria extrapolar os limites que interditam tanto a imaginação quanto a prática sexuais das mulheres. Ainda continuam a existir muitas interlocuções para o esforço violento de restabelecer e preservar essas margens entre os herdeiros dos penitenciais e manuais de confissão que prescreviam as posições, os dias, o lugar, o tempo para uma mulher fazer sexo. Toda história é uma história do corpo, é uma luta do e pelo corpo. E a história do corpo das mulheres é essa experiência de macro e micro guerras pelos seus corpos e das resistências para desapossá-los de domínios institucionais e particulares, religiosos e laicos, sociais e culturais; para chamar de violências toda benção matrimonial, todo álbum de família, toda fala que diz que quer ser “o pai dos seus filhos”.
Como Ben Shapiro procurou um ginecologista, procuravam-se padres, juízes, promotores, psiquiatras, eruditos, economistas, governantes para garantir todo um “catecismo sexual” da vida da mulher. E quando não dava para condenar ou regular diretamente essa existência, havia subterfúgios e pretextos que participavam dessa modelação de normalidade, como negligências ou indiferenças estrategicamente realizadas, precisas, um cálculo desse inconsciente de dominação. A rejeição à música WAP é também uma forma de continuar impedindo que uma mulher seja soberana na sua anatomia, nas suas sensações, nas suas fantasias e imagens de desejo. Continua a ser um empenho em negar-lhes saberes e experimentos do seu corpo como lugar dos seus prazeres, das suas próprias vontades de prazer, como se devessem ser meros receptáculos para a procriação e depois para a chantagem dos filhos e dos maridos. Sobretudo depois que se “descobriu” que o orgasmo feminino não era necessário para a concepção. Antes disso, era comum o entendimento de que as mulheres teriam uma satisfação sexual muito próxima (mas inferior) da do homem, do qual seriam também por isso uma forma “atrofiada”, “incompleta”. E não foi com o entendimento de que a fisiologia feminina seria independente da masculina que aconteceu uma autonomia do seu prazer. A negligência durante boa parte do século XX nos tratados de anatomia sobre o clitóris faria o seu papel na preservação dessas espécies de sujeições.
Foi apenas quase no início dos anos 2000 que apareceram estudos mais completos, com imagens e descrições minuciosas, sobre o clitóris, inclusive reconhecendo seu estatuto de órgão, especialmente de órgão para o prazer sexual da mulher. Uma das principais responsáveis por essas “novidades científicas”, a urologista australiana Helen O’Connell, que desenvolve suas pesquisas na Universidade de Melbourne, lembra sempre de toda uma história de negação acadêmica e clínica do clitóris, extirpando durante muito tempo as possibilidades de conhecê-lo. Essas negações, aliás, seguiram entre usos de cintas e mutilações, com seus “sumiços” e estigmas dos interesses e registros dos saberes, além das lacerações morais. Os estudos anatômicos dos séculos XVIII e XIX quase não o consideravam ou não o reconheciam por inteiro, embora houvesse nesses mesmos atlas do “corpo humano” muitas páginas de especificações sobre o pênis. Entre outras coisas, isso produziu todo um imaginário e suas verossimilhanças da experiência sexual como a sequência de um pau-que fica duro-que penetra-que ejacula. Mas com O’Connel, houve o primeiro detalhamento da vasta inervação e vascularização do clitóris, mostrando que suas terminações nervosas por milímetro quadrado são o dobro das da glande peniana, por exemplo. Mas Ben Shapiro e os seus vão continuar com a revolta contra os versos de Cardi B e Megan Stallion. Por isso que, quando elas cantam que “monta num pau como se os tiras estivessem atrás de mim” (“I ride on that thing like the cops is behind me”), pode-se pensar que estão mesmo. E não só atrás, mas ali logo embaixo, o que pode oferecer também uma boa oportunidade de eliminar esses policiais.
Humberto Pinheiro é historiador e desenvolve pesquisa em história da sexualidade.