Afinal, quem pode ser criança?
Pobreza e desigualdade profundas também determinam quem tem direito garantido à infância nas cidades brasileiras
Jamieson Simões
jamrsimoes@gmail.com
Hoje eu não consigo descrever ou conceituar o que é ser criança e o que é a infância. Abandonei tudo o que eu imaginava saber nessas décadas de defesa acirrada de crianças e adolescentes pela garantia de seus direitos constitucionais. Me apegava ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como uma utopia pra me manter esperançado e me mantinha em movimento para que esses brasileirinhos e brasileirinhas tivessem uma vida plena e pulsante. Afinal, o ECA foi uma conquista de uma geração de educadores e educadoras que me antecederam e lançaram na constituição cidadã um marco legal robusto, que transformou em lei o cuidado devido por estado, sociedade e famílias.
Quando digo que abandonei o que eu imaginava saber é porque as teorias que me serviam de lentes para olhar mais de perto as crianças produziram distorções, de modo que o adultocentrismo foi a base da minha relação com essas pessoas. Evidentemente que a paternidade me atravessou a existência, e nunca mais olhei para as crianças da mesma forma. Aprendi com Bertoni Jovine sobre a dupla alienação da infância, ao ser explorada nas periferias e privatizada nas classes média e alta.
As crias da classe média/alta têm uma infância estendida, digo infância no conceito clássico/colonial/excludente/eurocêntrico como período único da vida de descobertas, invenções de si e do mundo em que aqueles que estão nela mudam, mas ela em si permanece imutável. É uma infância líquida que expande por mais tempo do que a conceituação clássica de primeira e segunda infância que vai de zero a 9 anos. As crias da classe média/alta têm seu desenvolvimento tutelado e atravessado pela privatização. São instituições e profissionais da educação e psicologia que oferecem suporte ao desenvolvimento dessas crianças. Pais e mães apenas pagam a conta e exibem os aprendizados rumo ao destino manifesto encarnado nas crias: herdarão a cidade.
Lá onde o filho chora e a mãe não vê, a infância é encurtada e as condições de vida lembram cruelmente os relatos da infância pré-moderna. Se já sabe falar, andar e tem um mínimo de autonomia, já pode “ajudar” em casa. Vende bombom, água, pede no sinal, creche tá faltando, escola de ensino fundamental que lembra arquitetura de presídio, além do convívio constante com a violência, exposição às armas e à produção de uma subjetividade bélica, em que nada pode ser perdoado. Para não falar da configuração familiar, na qual a mãe assume e o pai some.
Bastide me diz no ouvido que, quem quer entender o Brasil, precisa se transformar em poeta. O arcaico das relações com as crianças e a infância estribucha e faz barulho. O novo, intergeracional, liso, multicor, mágico e criativo está presente e pulsante nas crianças que constroem sua própria condição infantil – a sua infância. Eu fico com o silêncio e o mistério. Afinal, nunca saberei sobre o encantamento de uma criança ao olhar por longo tempo uma réstia de sol que entra pelo buraco da telha.
Jamieson Simões é um corpo-negro no mundo com toda potência que isso implica. Está no Instagram.