Bemdito

Sonhos intranquilos entre a natação e o prostíbulo

Uma entrevista com Leandro Sarmatz, editor no Brasil dos diários de Franz Kafka
POR Jáder Santana

Uma entrevista com Leandro Sarmatz, editor no Brasil dos diários de Franz Kafka

Jáder Santana
jaderstn@gmail.com

Franz Kafka foi traído por seu melhor amigo. O desejo explícito de que seus trabalhos não publicados fossem queimados após sua morte, em 1924, não foi atendido por Max Brod, seu executor literário e primeiro biógrafo. Publicada em 1937, a biografia de Kafka, rebuscada, pouco objetiva e algo manipulada – talvez pela admiração extasiada nutrida pelo biógrafo – é elemento central na fundação do mito que estabelece o escritor tcheco como homem em eterno conflito existencial. 

Sua Carta ao Pai, outro documento privado, escrito como um acerto de contas familiar, também colaborou com a consolidação dessa mitologia particular em torno de Kafka. Escrita em 1919, motivada pela declarada oposição de seu pai ao casamento do autor com Julie Wohryzeck, a carta de cem páginas foi interceptada por sua mãe e jamais chegou ao destinatário. Mas chegou a público. Publicada originalmente em 1952, estabelece o contraste: o pai, um tirano orgulhoso, rude e pouco sofisiticado; o filho, uma criatura tímida, débil, profundamente insegura e incapaz de qualquer malícia ou rancor. 

Em seus Diários, escritos entre 1909, quando ainda era um autor desconhecido, e 1923, um ano antes de sua morte, encontramos o escritor atormentado que corresponde às nossas expectativas. Mas seus escritos pessoais também mostram, como explica o editor Leandro Sarmatz, da Todavia, um Kafka “esportivo, cômico e hedonista”. Com lançamento previsto para o próximo mês, os Diários mostram, em suas quase 600 páginas, um autor que viveu para a literatura sem esquecer os prazeres terrenos.

Confira a seguir entrevista que Leandro Sarmatz, editor dos Diários de Kafka no Brasil, concedeu ao Bemdito.

Bemdito // Em trecho dos seus diários, em 1913, Kafka escreve “Tudo que não é literatura me entedia e eu detesto”. À época, ele era funcionário de um instituto de seguros e começava a receber atenção como escritor. Como Kafka conciliava esse tédio e ódio por tudo o que não era literatura com um emprego absolutamente burocrático?

Leandro Sarmatz // Pelas próprias páginas dos Diários, e também por relatos biográficos a respeito dele, Kafka tinha algo de paradoxal em relação ao trabalho: era um funcionário exemplar e muito sensível aos trabalhadores que recorriam ao instituto, mas também percebia o quanto dessa vida “normal” tirava-lhe tempo e disposição para a escrita. Daí que ele escrevia à noite, nas franjas do turno de trabalho, nos dias ociosos. E os Diários parecem ser o espaço privilegiado dessa vida dedicada à escrita. É neles que Kafka, para além de relatar a própria vida, suas dúvidas, questões existenciais e rotineiras, exercita e afia os instrumentos de sua escrita. Um exemplo luminoso disso é a novelinha O veredicto, escrita numa noite milagrosa de setembro de 1912, quando Kafka encontra finalmente seu estilo de ficção. E O veredicto aparece inteiro nos Diários. Portanto, penso que ele metabolizava a existência mais comezinha nas palavras que escrevia, e muito disso ia para os Diários.

Bemdito // Os diários trazem mais que relatos do cotidiano. São leituras, decepções amorosas, cartas, sonhos, começos de obras… O leitor brasileiro é acostumado à ideia de um Kafka em eterno desassossego e crise existencial. Essa imagem se confirma no diário ou conhecemos outras faces do autor?

Sarmatz // Essa imagem do Kafka sempre atormentado, entre santo e mártir, é obra na verdade da primeira biografia dele a cargo do amigo e testamenteiro Max Brod. Brod fez um grande trabalho – coligiu os escritos do amigo, organizou a primeira edição dos Diários etc -, mas ele contribuiu muito para o mito do “São Kafka”. Milan Kundera e outros, principalmente os biógrafos mais recentes, apoiados em vasto material de pesquisa, ajudaram a desfazer esse mito. Kafka era um tipo esportivo, cômico (adorava fazer imitações), hedonista. Um homem “normal”, nesse sentido. Claro que estamos falando de um dos maiores escritores de todos os tempos, com uma sensibilidade prodigiosa. Mas Kafka teve sim seus momentos de recreio, de idas ao cinema, a prostíbulos, cafés etc. Um exemplo eloquente disso que aparece nos Diários é quando irrompe a Primeira Guerra. Kafka anota o seguinte em 02 de agosto de 1914: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. – À tarde, natação.” 

Bemdito // Vocês falam de “passagens de natureza sexual que foram omitidas nas primeiras edições.” A que isso se refere?

Sarmatz // As primeiras edições dos diários organizados por Brod eram um pouco pudicas, e tinham o intuito de construir esse “São Kafka”. Kafka recorria a prostitutas e inclusive há o registro de um sonho nas páginas dos Diários em que duas prostitutas são personagens. Ou seja, ele não era um asceta, um “artista da fome”, um santo recluso e martirizado. Era um homem de seu tempo.

Bemdito // Os diários se iniciam em 1909, quando Kafka estava na casa dos 20 anos e ainda não havia publicado as obras que o consagraram. É possível enxergar, nesse jovem adulto, traços da genialidade que seria vista depois?

Sarmatz // É complicado fazer essa profecia ao revés porque, hoje, tudo o que envolve Kafka tem esse poder da imensa genialidade dele. Mas eu diria que sim. O principal motivo é que já dá para perceber, no jovem Kafka, traços de uma sensibilidade muito especial, muito à flor da pele. Ele certamente não era um jovem comum nesse sentido: parecia enxergar mais e melhor através das coisas que aconteciam em seu cotidiano, em torno de sua família, de seus afetos. Que anos depois ele tenha transformado isso numa das ficções mais intrincadas de todos os tempos, aí tem a ver com isso, claro, com suas leituras, com seu contínuo processo de amadurecimento da escrita. E pelo que há de intangível nos talentos mais raros.

Bemdito // O texto cobre o período de publicação de alguns de seus clássicos, como A metamorfose (1915) e Na colônia penal (1919), mas se encerra antes da publicação de outros, como O Castelo (1926) e O Processo (1925), que são póstumos. Kafka fala, nos diários, dessas obras que não tiveram publicação até sua morte?

Sarmatz // Sim, há desde referências veladas a frases que à primeira vista podem soar emblemáticas mas que são pequenos trechos de O castelo, O foguista e outros textos. Ele também expõe algumas dúvidas sobre a escrita dos textos, suas hesitações como homem de letras etc. Ele tem uma franqueza que por vezes desconcerta, e também não parece ter muito medo de confrontar as próprias certezas.

Bemdito // Os diários se encerram em 1923, um ano antes da morte de Kafka em um sanatório. Pelo que se sabe, foi uma morte sofrida, com o autor impossibilitado de se alimentar pelo agravamento de seus problemas de saúde. Os últimos registros dele em seus diários dão alguma pista no sentido dessa agonia física e espiritual?

Sarmatz // Há anotações por volta de 1922 e 1923 que atestam isso. Ele sofre de febre, cansaço excessivo – mas muitas vezes anota que se queixar disso seria pouco adequado. Fala em “tartufismo”, evocando a peça de Molière. É certo que ele viu o cerco da doença se fechando, uma doença que naquela época era como uma sentença de morte. Não deixa de ser tragicamente irônico a gente ver a publicação do registro íntimo da vida de alguém que morreria de uma doença respiratória – como tantos pacientes de Covid-19 hoje em dia.

Bemdito // Como editor, o que mais te impressionou na preparação desse material? Você tem algum momento favorito no livro?

Sarmatz // Eu já era um colecionador de várias edições dos Diários: como não leio alemão, tenho edições portuguesas, francesas, espanholas e de língua inglesa. De modo que era um projeto antigo e muito acalentado. Para mim o mais impressionante foi testemunhar – e não há melhor palavra para isso – o trabalho incrível de Sergio Tellaroli. Ele é um mestre. A sensibilidade literária, a erudição, o tirocínio, tudo isso faz do trabalho do Tella uma coisa muito especial mesmo. Ele pesquisa muito, recorre a bibliografia, se aconselha com outros tradutores internacionais. E faz, refaz, melhora sempre. Isso foi muito especial, ao longo do tempo: ver essa tradução nascendo com toda essa qualidade em nosso idioma. 

Tenho várias passagens favoritas. Uma delas é a sequência em que Kafka faz camaradagem com o povo do teatro iídiche. Lembre-se que ele era um judeu urbano, falante de alemão e súdito do Império Austro-Húngaro, então aqueles atores e artistas do leste europeu eram de “outro mundo” para ele: um mundo ancestral, que evocava o tempo de seus antepassados etc. E a descoberta desse teatro, que era popular, meio folclórico, sentimental etc, foi muito importante para ele.

Bemdito // A capa da Todavia é do Tom Gauld, um autor que ilustra como poucos a solidão do homem. De onde surgiu a ideia para o convite?

Sarmatz // Tom Gauld é demais! Inclusive tem um livro em que Kafka é personagem. O autor da ideia é o André Conti, outro editor da Todavia, e nosso grande especialista em quadrinhos. André editou 2 livros do Gauld na Todavia. De maneira que a ideia foi perfeita – e o Gauld, diga-se de passagem, topou na hora e semanas depois entregou essa ilustração sensacional.

Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. É mestrando em Estudos da Tradução pela UFC e curador da Festa Literária do Ceará (Flac). Está no Instragam e Twitter.

Serviço
Diários (1909-1923)
de Franz Kafka
Tradução de Sergio Tellaroli
576 páginas
Editora Todavia
R$ 79,92
Clique para ver

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.