Bemdito

O diário da enxaqueca

O que um tratamento sobre dor me ensinou sobre a memória guardada no corpo e o destino social das mulheres
POR Juliana Diniz

O que o tratamento da dor me ensinou sobre a memória guardada no corpo e o destino social das mulheres

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

– Com que frequência você sente dor?

Foi a pergunta sincera do neurologista, que tentava entender a gravidade do meu relato de enxaqueca. Aos vinte, talvez vinte e um anos, eu era um poço de ansiedade, me equilibrando para dar conta de uma quantidade maior de projetos do que seria prudente assumir. 

A pergunta do médico, um homem simpático e amigável, me pegou desprevenida, e devo ter hesitado por alguns minutos antes de responder. Lembro claramente de ter imaginado a delícia que seria uma vida onde a dor não fosse uma companhia permanente e sim um evento extraordinário, um evento que se pudesse precisar no calendário – como uma ressaca, uma gripe, um coração partido. 

– Doutor, eu sinto dor o tempo inteiro, o que varia é a intensidade.

O diagnóstico não foi difícil, descobri que meu relato correspondia a um quadro clássico de enxaqueca em franca crise – quando o intervalo entre os episódios de dor é muito curto, e o paciente passa mais tempo em sofrimento do que “bem”. O médico me explicou que, quando isso acontece, o uso exagerado dos analgésicos acaba gerando um efeito rebote – os comprimidos provocam um alívio rápido, imperfeito, para em seguida dar lugar a mais dor de cabeça. Não era inteligente me entupir de remédios (depois de um tempo, você fica dependente deles), seria preciso “sair da crise”, para depois entender as raízes da minha enxaqueca e descobrir como evitá-la, deixando os analgésicos como o último recurso. 

Segundo a Sociedade Brasileira de Cefaleia, a enxaqueca atinge cerca de 15% da população mundial e é uma das formas mais comuns de dor de cabeça: é uma dor que “geralmente ocorre em um lado da cabeça, é de moderada a forte intensidade, latejante e incapacitante, comumente se associa a enjoo, incômodo com luz e com barulho”. Uma dor tão peculiar que é possível identificá-la sem sustos – a visão embaçada é talvez o sinal mais claro que em breve a dor chega para se instalar sem hora para ir embora.

Uma crise pode levar horas, dias. Cresci vendo minha mãe sofrer, muitas vezes por muito tempo, trancada em um quarto escuro, o gelo nas têmporas, e lembro de cedo ter aprendido certos movimentos de automassagem que podem ser úteis para distrair a cabeça quando o latejar se arrasta madrugada adentro. Poucos objetos me são tão vitais desde a adolescência quanto um punhado de bolsas de gelo permanentemente resfriadas no freezer.

O neurologista me explicou que o tratamento não equivalia a uma cura, sofrer com enxaqueca é como ser sorteado por uma loteria genética, mas que uma boa dose de autoconhecimento me ajudaria a evitar os gatilhos mais comuns. Excesso de luz, muito tempo de jejum, castanhas e feijão preto, estresse severo, resistir ao Brasil, cada pessoa tem seus mapas de fraquezas: a lista de fatores causadores de crise é extensa, variada e absolutamente aleatória e pessoal. Para tratá-la, seria preciso entender a minha dor, prescrutá-la, compreender que culpas ela busca aliviar, como se a enxaqueca fosse uma forma da minha mente desviar minha atenção para uma ameaça pungente, sofrida, mas menos grave.

Saí do consultório com a tarefa de me dedicar a um diário de todos os meus incômodos, uma tentativa curiosa de compreender aquele mal que me debilitava, me impunha tantos sofrimentos e uma sensação generalizada de mal-estar. Uma pequena planilha continha um calendário com pequenos relógios, uma escala de intensidade de dor e espaços para detalhamento de hábitos alimentares e de vida.

Além do diário, entendi que me comprometia com a tarefa de uma vida (que não me pareceu clara então): entender como meu corpo e o de tantas pessoas trabalha para somatizar emoções, medos e ressentimentos na forma de pequenas ou grandes enfermidades, fragilidades físicas, desordens no funcionamento do que é biológico, fisiológico. A tarefa de descobrir as razões ocultas não de uma enxaqueca, mas de todas as dores que se manifestam como sintomas de sombras do interior.

Todo corpo tem uma memória, um tema que me parece tão fascinante que me levou a escrever um livro sobre os rastros do passado inscrito nos ossos. Se você se dedicar muito e tiver paciência, é possível entender o quanto alguém sofreu lendo os vincos de seu rosto, a firmeza do caminhar, a habilidade de manter o passado por perto na memória, laçado. Entender a minha enxaqueca e descobrir por que me fazia sofrer – e assim, minha cabeça latejar – passou a ser uma forma de evitar um futuro triste, de dores emocionais enraizadas em enfermidades físicas. 

Compreendi que me motivava o desejo de tapear um destino social: ao meu redor, é incontavelmente maior o numero de mulheres envelhecidas e muito debilitadas. Vi minha avó paterna definhar até morrer depois de atravessar uma vida triste, o corpo fragilizado desaparecendo aos poucos. Por muito tempo, pensei que afirmar publicamente a tristeza da minha avó seria uma forma vulgar e indiscreta de maltratar a memória do meu avô, mas hoje percebo que guardar esse silêncio é uma forma de penalizá-la duplamente. Dizer que minha avó paterna foi uma mulher triste e, a partir disso refletir sobre as possibilidades da minha condição é, na verdade, uma arma que minha avó me deixa para evitar um destino semelhante.

 Costuma-se dizer que os homens amadurecem melhor – o que é uma meia verdade. Os homens envelhecem com penas menores porque são agraciados: um homem sobrevive a eventos menos traumáticos do que cabe a uma mulher enfrentar. As avós e mães da minha geração são retratos não só de um tempo, mas como esse tempo tratou as mulheres, e lhes cobrou não só dedicação, subserviência, mas também (e sobretudo) saúde. São mulheres que sentem mais dor de cabeça, que enfrentam tumores mais agressivos, que são penalizadas por toda sorte de doenças mentais difíceis de tratar.

Por tudo isso, tenho uma relação complexa com minha enxaqueca, de respeito, afeto e temor. Ela é quase sempre um sinal de desequilíbrio, um pedido de socorro ou alerta, e me ajuda a retomar as rédeas da saúde. Ela também me impõe o sofrimento de me afastar de quem eu sou, ou de quem eu gosto de ser. Quando dói muito e forte, não é possível pensar, escrever, ler, toda a realidade parece distanciada e a potência vital diminuída. Uma dor incapacitante – o mais alto grau de dor na escala de classificação que o neurologista me entregou para completar – é uma forma cruel de perder-se de si.

Evitar que a dor me incapacite é hoje um projeto. Assim como deve ser o projeto mais íntimo e inconfessável de todas as mulheres. Me apego a ele munida de um mapa interior, uma caixa de analgésicos e um desejo latente de ser uma velhinha de olhos límpidos, memória fresca, estampando no meu rosto uma geografia feliz.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.