Bemdito

A família da polícia

Como a família heteronormativa e o Estado estabelecem juntos a ordem dos desejos e das coisas
POR Humberto Pinheiro
Virgo inter Virgines (Master of the Legend of Saint Lucy)

Como a família heteronormativa e o Estado estabelecem juntos a ordem dos desejos e das coisas

Humberto Pinheiro
hpf1808@gmail.com

Seja lá o que signifique a ideia de começar algo, eu não ia iniciar este texto assim. O que me faria achar que não estou errando melhor. Parafraseando Nelson Rodrigues, parece que todo fato é também um fato da véspera, todo tempo é um tempo da véspera. Domingo último foi o dia das mães, porque foi o dia das que não podem ser mães, não por causa das chantagens dos tratamentos médicos, mas porque a justiça não quer, não deixa.

Porque o Estado sempre consegue funcionar para acomodar, ajustar as dominações. Seus agentes estão rotineiramente prontos para restabelecer essa ordem das coisas e dos desejos. E o que ainda vale muito é o pacto sinistro feito entre administração pública e família heteronormativa, com ambas sabendo ser a polícia de todos os outros.

Esse concerto não se exaure ou se encerra apenas com novas leis e normas, pois astuto com suas nuances e álibis, já que se conserva passando-se como novidade. Seguindo, portanto, finamente violento como se fosse uma autêntica defesa de novos direitos. Usa, por exemplo, o discurso de proteção da criança para estigmatizar e marginalizar a diversidade sexual. Aliás, usa essa conversa para impedir qualquer diversidade de ideias, principalmente aquelas que desestabilizariam seus acordos de família, como os que protegem (seja pela indiferença, pela negligência, ou pela cumplicidade mesmo) os assédios e abusos sexuais contra menores e mulheres, desde que feitos no coração familiar, começando muitas vezes pelos carinhos insuspeitos do papai, do titio, do vovô.

A família sabe não só produzir monstros, mas protegê-los também, lutando pelo seu direito à violência, como todo convívio reivindicado como normal. Filosofia e ciência políticas mais tradicionais gostam de falar da noção de “contrato social” como arcabouço jurídico da modernidade, mas se deve ver nele e nas suas apropriações fatores e implicações de outros “contratos”, como sexual e afetivo, embora sem uma história de comentários que os articule diretamente.

É muito de leis, normas, materiais que falamos (ou que fala em nós) quando falamos de “amor”, “sexo”, “família”. E da mesma forma como não se transa ou se ama uma pessoa, não se “tem” um filho, apesar do dia das mães. É por isso também que esse tipo de data não consegue deixar de ser uma comemoração cívica, como o dia da bandeira nacional, com seus próprios chauvinistas.

Do contrário, ninguém deveria comemorá-lo enquanto Bárbara Pastana não tivesse “seu” filho devolvido do cativeiro moral da justiça brasileira. Pastana, travesti e ativista pelos direitos humanos, não passou o último domingo com ele, que tem 7 anos, porque perdeu a sua guarda depois de postar uma brincadeira com o filho nas suas redes sociais.

Ela gravou um vídeo no qual coloca uma das suas perucas na cabeça do garoto e escreve a seguinte legenda: “kkk ele fica louco quando quero pentear minhas perucas e uso a cabeça dele como molde kkkkkk”. Com a circulação desse registro, logo começaram as acusações de que ela queria forçar a mudança da orientação sexual do menino, entre outras paranoias. Em seguida, Pastana foi denunciada ao Ministério Público e ao Conselho Tutelar, vendo, poucos dias depois, seu filho ser retirado de casa e levado para morar com um tio, que é pastor evangélico.

A denúncia foi feita com base no artigo 232, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que fala sobre “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento”. Para mim, humilhante, constrangedor, cruel, é aprender a rezar com os parentes.

Se só aprendemos sobre uma relação amorosa quando a narramos do ponto de vista da sua separação, como é um divórcio que melhor nos conta sobre o que foi o casamento, conhecemos bem o que significa um filho quando se disputa sua responsabilidade num contexto judicial, que inclui custos de advogados sacanas, precariedade da defensoria pública, pantomima das audiências e moralismo do juiz, que muitas vezes não vai passar pela situação que julga porque ganha um salário muito superior ao das partes em questão. Sem esquecer as outras desigualdades pelas quais se movimenta o poder de justiça no Brasil.

Entre os magistrados brasileiros, quantas são mulheres, negros, transsexuais? Quantos foram filhos de pais pobres? Quantos tiveram uma mãe travesti de quem foram tirados por uma decisão obviamente transfóbica?

O caso Bárbara Pastana deveria ter mobilizado um dia de greve da maternidade em solidariedade a ela. Uma suspensão de qualquer lanche ou almoço maternal em respeito ao seu sofrimento e em protesto contra a sentença da qual foi vítima.

Mas ninguém soube dela, ninguém quer saber dela. Porque a sua condenação é a contrapartida da convicção de muitos papais e mamães de que estão fazendo a coisa certa, ainda que estejam apenas contribuindo para aumentar os herdeiros da nossa miséria.

Humberto Pinheiro é historiador e desenvolve pesquisa em história da sexualidade.

Humberto Pinheiro

Historiador e pesquisador em história da sexualidade, também tem pesquisas na área de história da literatura e do romance moderno.