Bemdito

O Estado contra as mulheres

Novas notas sobre os canalhas e seus colaboracionistas
POR Humberto Pinheiro
Giuseppe Porta

Entre outras resistências minoritárias, toda luta por igualdade de gênero tem de ser também uma luta, uma guerrilha civil. É preciso que seja um embate constante contra a vigília e o sono do poder, que produziu muitos séculos de controle do dia e da noite das mulheres, sobretudo quando ele aparentemente não vigiava, não observava, quando parecia estar desligado das suas tarefas mais conscientes. Aqui, a idéia não é que a dominação nunca dorme, mas que ela não apenas adormece como sonha sempre, bastante, para melhor (no sentido de pior) disfarçar as suas investidas, os seus ardis, como se os seus objetivos não fossem tão obcecados assim, para atribuir seu delírio a quem o denuncia e o quer combater, inventando lugares e problemas nos quais não estaria presente, não seria dele que se trataria, mas de formalidades técnicas, burocráticas, factuais, ou de informalidades do que seria espontâneo, ingênuo, engraçado.

Mas não, a dominação não deixa brechas, não dá intervalos, por isso que todas as suas violências de raça, gênero, classe são estruturais e articuladas, com múltiplas cumplicidades, como entre a consciência e a inconsciência, por exemplo. Por isso que toda batalha por igualdades e justiças é uma batalha contra as moralidades cívicas dos negócios, com seus governos, suas empresas, suas máquinas e seus sonhos. 

Os perigos não estão na esquina. As ameaças e perversidades são feitas e mantidas de porta principal para porta principal, a da casa, a do escritório, as dos gabinetes municipais, estaduais, federais. As portas dos cargos, das comissões e dos esquecimentos. Já foi dito que todo fascismo é feito da banalidade das horas, dos movimentos, da supostamente inofensiva vontade de voltar para um conforto do lar. Mas já também podemos saber que pequenos roteiros triviais são feitos de casuais fascismos. Grandes fascismos, pequenos negócios; grandes negócios, pequenos fascismos. Aqui, a emergência é saber qual a colaboração de cada um nesse (e para esse) estado de massacres.

Não querer desagradar é um desses finos colaboracionismos. Não querer confrontar, romper, perder são outros. Em um de seus últimos textos no jornal Folha de São Paulo, Djamila Ribeiro escreveu que o Brasil é um “país de genocídio de mulheres”, lembrando, entre vários números e histórias dessa constatação, que este é o “lugar onde mais se morre em decorrência da criminalização do aborto”. Djamila observou como há todo um cultivo do noticiário informativo que reproduz o ódio contra as mulheres, contribuindo para sua continuidade, ao esconder essa cultura do feminicídio brasileiro, por exemplo, sendo gramaticalmente negligente (toda negligência é também uma negligência gramatical) ao não chamar a coisa pelo nome, ao não querer chamar a coisa pelo seu nome.

Da metade do século XX para cá, aprendemos a imaginar (e a falar) o Brasil como uma pátria de chuteiras, do que virá, da alegria, do samba, do carnaval, do sol, das praias, das mulatas. Mas a cada uma dessas imagens e imaginações, toda a sua população não branca, não masculina, não heterossexual, pobre, periférica, sem qualquer parte em nada era moída pela sua exclusão de qualquer democracia concreta, sendo assassinada de morte do dia ou dos próximos dias, um morticínio feito de futuro do passado. Enquanto corriam os tempos do jogo, da música, da festa, da areia, do mar e das manchetes, o tempo feminicida brasileiro corria sem trégua, mas abafado pela camaradagem patriarcal, inclusive com sua imprensa, que, como lembra Djamila, sempre soube escamotear “a precarização de políticas públicas de proteção à mulher”, sem deixar de esconder, como se não dissesse respeito à nossa história, uma cultura de estupro de minorias sexuais que sempre foi um dos fatos mais diários da nossa formação social. A cada oito minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. 

A chamada mídia tradicional sempre soube sumir com os corpos e suas marcas de explorações e violências de pobres, negros, mulheres, homossexuais, transexuais. Sempre soube fazer esquecer tudo isso, ou mesmo nos fazer achar que essas coisas pouco existiram, para que seus negócios não fossem atrapalhados. Temos de ter muitas suspeitas quando esses empreendimentos noticiosos se colocam como defensores da democracia. Normalmente, isso é mentira. Eles só pensam em defender mesmo seus patrimônios, das suas famílias, dos seus acionistas, usando o operariado mal remunerado das suas redações para forjar troca de favores em reportagem.

Só é possível defender uma democracia pra valer se você estiver disposto a perder tudo. Às vezes, nem precisa ser tudo. Basta não querer uma comissão num projeto publicitário, um cargo na prefeitura, uma assessoria de um deputado estadual. Basta não querer ser um jornalista que, ao assumir a chefia de comunicação de um governo, vai acossar e ameaçar outros jornalistas que estão tentando fazer razoavelmente algum trabalho. Basta não querer ser tão explicitamente um animador de audiência de empresários e gestores públicos, que, aqui e acolá, sabem se revezar bem nessas posições, basta olhar os nomes nos primeiros e segundos escalões de cargos nos governos federal, estadual, municipal de qualquer época. Alô, Bemdito, você tem de ser independente para ser contundente! Cuidado com essa promessa de irreverência, pois você pode se tornar o mais novo bobo da corte. 

Faz pouco mais de um mês que foi publicada numa meia página acanhada do jornal O POVO a notícia da lei da “Semana pela Vida”, da prefeitura misógina do José Sarto, sobre a qual falei na minha última coluna aqui no Bemdito. Se você não viu, quem sabe esta seja mais uma oportunidade para não ver de novo. Depois dessa nota do jornal, houve outra quase uma semana depois dizendo que a lei passaria a incluir uma campanha de esclarecimentos sobre acesso a métodos anticoncepcionais. E acabou, pelo menos para a “grande imprensa” local, para a “grande imprensa” patriarcal local. E assim se maquinam as notícias, desprezando o sofrimento das mulheres, principalmente das mulheres pobres, que também para essas mídias e para seu patronato político só começaram a menstruar nas últimas semanas, já que dificilmente encontraríamos nas colunas desses órgãos de imprensa, nas demandas empresariais e nas políticas públicas dos últimos cem anos qualquer iniciativa para falar e combater a pobreza menstrual.

Desde que vi o avanço dessa lei municipal que quer impedir que as mulheres possam dispor de seus corpos como bem quiserem, espero (mas é uma espera irônica) um editorial conclamando para uma “greve dos ventres”, tal como mulheres francesas organizaram no final do século XIX, reivindicando o direito de possuir seus próprios corpos. Mas é claro que não vai haver tal exortação. Porque “há um morcego na porta principal”. Porque “há um abismo na porta principal”. 

Humberto Pinheiro

Historiador e pesquisador em história da sexualidade, também tem pesquisas na área de história da literatura e do romance moderno.