O Estado pornográfico #2
A médica Mayra Pinheiro disse na CPI da Covid que viu um “pênis inflável” na entrada da Fiocruz, no Rio de Janeiro. Confirmando não ter dito um “tênis inflável”, insistia na realidade da visão, embora ambos possam ser motivos de fantasias e de revoltas, porque são temas das domesticações dos nossos desejos.
Inclusive, ambos podem ser muitas vezes o mesmo troço, uma mesma síntese de crueldades. Vocês conhecem o circuito de produção de um tênis, as condições de trabalho nesse processo, a situação das mulheres nele, o uso de isenções fiscais e o aproveitamento da precariedade e desigualdade sociais de lugares nos quais “grandes marcas” esportivas instalam? Ou contratam suas fábricas para confecção desses calçados?
Essas palavras quase homógrafas e homófonas, tantas vezes propositadamente confundidas nas recreações misóginas e homofóbicas, têm muito em comum numa história que quer ver invenções econômicas e sociais feitas de hierarquias e exclusões de gênero e de sexo. Há todo um hábito do pênis na cultura do tênis, e vice-versa. Aliás, há toda uma cultura do pênis nos lugares da cultura.
Entre símbolos e materiais, o falocentrismo quer dizer muita coisa. Por isso, Mayra não estava totalmente errada quando testemunhou a visão do genital masculino na entrada da instituição. Nem Osmar Aziz ao tentar corrigir a palavra que a depoente teria mesmo dito. Mas eles estavam certos pelos motivos errados, como normalmente estamos. Porque onde mais eles deveriam ver e ouvir o que dizem ter visto e ouvido em outros lugares eles não o fazem.
Aziz deveria aprender que as duas palavras, tão parecidas, podem ser a mesma sem que deixem de ser cada uma. E Mayra poderia ser bem mais hábil em vislumbrar a ameaça, entendendo que, quanto menos óbvia, tanto mais perigosa. Porque ela faz parte de um governo e é comparsa da sua lógica perversa, que são as verdadeiras casas do caralho.
Se muitos equipamentos urbanos e signos sociais modernos foram pensados e praticados como uma garantia de legitimar e proteger a vida sexual de homens brancos, podemos ver o espólio desses privilégios patriarcais em muitos cenários físicos e morais hoje, inclusive em espaços de representação política. No caso do Brasil, em qualquer parlamento, por exemplo. Por isso que Mayra Pinheiro deveria ter dito que via pênis, infláveis ou não – ou infláveis porque disfuncionais, quando chegou ao Senado para depor, quando viu a cloroquina na mão do Bolsonaro pela primeira vez, quando viajou a Manaus com um dos generais de borracha, quando recebeu o convite para fazer parte desse governo, quando decidiu votar no então candidato.
Foram várias as oportunidades que ela perdeu de denunciar com mais precisão todas essas imagens de culto ao falo, com as suas próprias estruturas de violência. Todas as figuras de retórica, de normas, de presenças, de performances, de camaradagem, de alianças, de leis, de salários, de segurança, de bajulação que foram ganhando contornos e substâncias na medida dessa celebração.
As histórias são as histórias das lutas, das dominações, dos massacres e das resistências: de classes, de classificações, de raças, de sexos. Todo corpo e todo lugar são corpos e lugares dessas lutas e das suas memórias, são inscrições desses movimentos e dessas experiências. E como parte significativa dessa história foram as investidas e estratégias ideológicas e materiais de exploração e controle das vidas das mulheres, não é delírio ou excesso de imaginação dizer que divisou pênis em muitas paisagens e coisas.
Pelo contrário, é acuidade e crítica. Do “recolhimento” doméstico à “exposição” pública, das noções de moral às noções de ética, da tutela à autonomia, do constrangimento ao prazer, da madeira ao ferro ao plástico, das especiarias aos minérios aos destilados, da matemática à química, das cobertas à nudez, do silêncio ao barulho, muita coisa definida e decidida por quem e para quem tem um pênis.
Nessas passagens, conexões e confabulações entre substâncias, coisas e subjetividades, podemos ver tudo, menos inocência. Devemos ver sequências de garantias e vantagens para os homens, disfarçadas de técnicas, conhecimento, objetividades. Não apenas a arquitetura é fálica, mas a própria lógica e as condições de circulação no espaço urbano o são. Não apenas os comprimidos tantas vezes foram fálicos, mas os termos das suas produções e dos seus usos também.
Muitos testes clínicos, com hormônios sexuais, foram feitos em latitudes coloniais e em endereços que reproduziam a sua mesma racionalidade. Exemplos disso são as instituições psiquiátricas e penitenciárias, onde corpos considerados inferiores – e ocupando esses lugares por isso e para marcar isso – ao da razão branca masculina ocidental foram usados nesses experimentos, até que eles pudessem ser seguramente consumidos nas ambiências de classe média heterossexual.
Foi assim com a pílula anticoncepcional. Surgida de um “erro” laboratorial no início dos anos 1950, a pílula trazia inicialmente o interesse de contribuir para a reprodução de “famílias católicas brancas estéreis”, mas os desdobramentos das suas pesquisas (feitas por homens brancos e testadas em mulheres pobres) pressupunham o controle reprodutivo do governo de existências racializadas. A ideia era que fosse um “contraceptivo simples, seguro e barato para ser usado em favelas miseráveis, selvas e entre as pessoas mais ignorantes”.
Uma nano físico-química do poder. Uma ardilosa forma de controle eugênico e de reação política contra as minorias raciais e sexuais que levantavam, nessa metade do século XX, mais uma frente das suas batalhas por direitos e por igualdade. Mas sempre que essas vidas mínimas não mais se ajustavam ou podiam ser controladas pelas sevícias sexuais, laborais e laboratoriais da economia moderna, elas eram diretamente eliminadas por outra conjunção entre indústria e valores. Pela mesma tralha que os bolsonaristas se orgulham de falar que têm dentro das calças e que não indignou uma médica de família.