A memória da sociedade
Agora que a janela de transferência partidária se fechou, podemos dizer que legendas e pretensos candidatos engataram uma segunda marcha rumo às eleições deste ano. Conforme o calendário eleitoral, terminou o prazo para quem queria mudar de sigla e a partir de agora as peças do jogo, ao menos, foram separadas em caixas. Em breve, poderão ser posicionadas no tabuleiro, prontas para novos movimentos.
Não é novidade nenhuma que os motivos para o troca-troca não foram ideológicos. Se um político não se sente confortável ou seguro entre seus correligionários, não precisa esperar uma data definida pelo TSE. Basta pegar seu boné (e quem sabe o mandato?) e saltar para outro galho. As razões para o troca-troca são estratégicas, visando agremiações que garantam mais verba de campanha (alô, fundo eleitoral!) ou condições de sobrevivência (alô, federações partidárias).
Terminou o prazo para o vai-vém partidário, mas isso não impede as negociações internas e a busca por mais holofote, vitrine e espaço público. Aliás, isso nunca termina, pois a vida partidária é feita também dessa dinâmica infinita de competição. As especulações na mídia e fora dela vão se intensificar nas próximas semanas, aproximando os partidos dos clubes de futebol que quebram as cabeças para escalar seus times.
Em paralelo, jornalistas e meios de comunicação podem tambem reorganizar suas agendas e esforços para se preparar para os próximos capítulos. A sete meses do primeiro turno, o jornalismo brasileiro terá novamente tempo para não desperdiçar a chance de se validar junto à sociedade como importante instrumento de reforço da democracia. Trocando em miúdos: o jornalismo poderá se mostrar novamente útil, relevante e necessário para auxiliar as pessoas a escolherem nas urnas os seus representantes.
Cobrir eleições nã é uma novidade para o os jornalistas brasileiros, mas o pleito deste ano tem sido apontado como o mais decisivo desde a redemocratização em janeiro de 1985. Afinal, neste ano, vamos decidir se reconduziremos ao Planalto um presidente que já esfregou diversas vezes na nossa cara que não tem compromissos com a democracia ou se escolheremos mudar a chave política. O mesmo vale para um Congresso Nacional hesitante, marcadamente fisiologista e comprometido com causas anticivilizatórias.
Bolsonaro já gritou suas ameaças à democracia a plenos pulmões, já cansou de atacar o sistema eleitoral e não deixe nenhuma dúvida de que quer se manter na presidência da República, a qualquer custo. A alcateia que muitos chamam de Centrão – mas que de centro tem muito pouco – também já arreganhou seus dentes e não desgruda os olhos do controle de parte substancial do orçamento e de outras vantagens financeiras.
Se aos eleitores cabe escolher quem vai para o trono ou não vai, o que resta ao jornalismo?
A resposta imediata é: cabe ao jornalismo fazer o seu trabalho que é cobrir as eleições, levando o máximo de informação aproveitável ao público. Em termos práticos é colar nos candidatos, destrinchar suas propostas, repercutir temas da agenda social e extrair dos políticos compromissos e posições frente aos desafios sociais.
Sim, de forma geral, é o que sobra à imprensa, mas não podemos deixar de lado outro papel: cabe ao jornalismo servir de arquivo e memória da sociedade. A vida corrida, as preocupações mais imediatas e a necessidade de sobreviver promovem ondas diárias de amnésia coletiva. Priorizamos o dia de hoje pois ele já é cheio de dificuldades; armazenamos o que sabemos do ontem porque o que nos preocupa muito mais é o amanhã próximo.
Por isso, jornalistas e meios podem ajudar muito neste momento, oferecendo lembretes estratégicos, análises de períodos históricos mais recentes, e contextos que nos permitam entender causas, consequências, ações e atores responsáveis.
Não se trata tão somente de viver no passado, pois eleição é apostar em futuros possíveis. Entretanto, nenhum futuro está descolado de episódios presentes e pretéritos. Desconsiderar o passado de um partido, coligação ou candidato é um erro que costuma cobrar alto preço, e a fatura nem sempre demora muito a chegar. Para além disso, há um compromisso que o jornalismo não pode ignorar: a fiscalização dos poderosos.
Esta função se materializa na análise desapaixonada do que os atuais ocupantes de cargos fizeram (e deixaram de fazer) nos últimos anos; na verificação do que cumpriram sobre o prometido; na observação da coerência e correção de seus atos, e por aí vai…
Costuma-se dizer que quem está no poder tem mais vantagens para nele permanecer, dadas as configurações históricas da política nacional. Não deixa de ser verdade. Por outro lado, quem está no poder tem (ou deveria ter) o que mostrar e precisará ser cobrado por isso. O jornalismo deve se ocupar dessa tarefa, de modo a aliviar a amnésia social diário com doses generosas de contexto crítico. Para aqueles que buscam mais uma chance para permanecer em cargos de poder, a ocasião reserva inadiáveis sessões de julgamento por suas ações.
Onde estavam nos últimos anos? O que fizeram de verdade diante dos nossos maiores desafios? No que se omitiram? Por que agiram assim?Se recordar é viver, cumprindo a função de arquivo e memória da sociedade, o jornalismo pode ajudar a dar sobrevida para o que chamamos de democracia. Com o perdão da piada fácil, esta é uma tarefa inesquecível.