Bemdito

A República das orelhas cabeludas

Bandeira nacional em uma mão e três oitão na outra. Já tesoura de aparar que é bom, nada!
POR Felipe Pinheiro

A biologia define como “hipertricose auricular” o crescimento desenfreado de cabelo na zona da orelha masculina, conforme a idade avança. De origem hereditária, a danada da hipertricose não escolhe classe social ou credo, somente faixa etária. Ataca tanto senhores de garbo, cheirosos e higiênicos, quanto senhores orgulhosamente arcaicos, “raiz”, eles dizem, e com menor interesse pelo asseio.

Mais uma vez, a passagem do 31 de março ao 1º de abril no Brasil foi marcada por uma manifestação peculiar, cada ano mais corriqueira, quando a alta patente de senhores da orelha cabeluda da caserna se junta aos senhores da orelha cabeluda do cercadinho bolsonarista, esses de patente nenhuma, para unidos declamarem odes festivas ao golpe militar de 64, ao horror marcial praticado no país durante duas longas e funestas décadas.

Enquanto senhores de garbo, cheirosos e higiênicos se postam diante do espelho para duelar a hipertricose e tosar a franja das orelhas, os senhores da caserna e cercadinho reúnem-se, seja virtual ou fisicamente, em um grande sarau de orelhas cabeludas. Ali, põem-se a sonhar, acordados e em voz alta, com uma nova revolução, que de uma vez por todas fundaria neste sofrido solo a “República das Orelhas Cabeludas”.

Na República das Orelhas Cabeludas, todo dia é dia de afivelar o cinturão do coldre e sair às ruas em marcha, bandeira nacional de capa, cabo do três oitão à mostra, para gritar palavras de ordem e, sem qualquer razão justificável, retesar as costas e prestar continência – sinceramente o ato mais “doidinho de bairro” que existe. Qualquer bairro tem um doidinho que presta continência sem razão justificável. 

Toda hora é hora, na República das Orelhas Cabeludas, de dar asas ao complexo de herói e combater inimigos imaginários: cavar uma trincheira, abrir um flanco, liderar uma cavalaria e atacar moinhos de vento enxergando neles o monstruoso dragão do comunismo. Também vale montar divisões de inteligência para espionar infiltrados invisíveis, apurar intrigas internacionais e teorizar mirabolâncias até o orgasmo conspirativo.

Dos tantos ritos e solenidades mandatórios na República das Orelhas Cabeludas, cantar o hino nacional é o mais eminente. Cantar o hino antes de dormir e depois de acordar, como se fosse “Pai Nosso”. Sentar à mesa e cantar o hino. Cantar o hino na hora do anjo. Cantar o hino quando for botar o menino pra dormir. Cantar o hino em batismo, casamento, missa, culto, terreiro… Mandar a doula cantar o hino durante o parto humanizado. Contratar carpideiras para cantarem o hino num velório. Cantar o hino com o dedo no leitor biométrico do caixa eletrônico pra liberar um saque de 20 reais. Quando achar que tá muito, é prova de que ainda tá pouco, e só será suficiente quando se achar que ainda tá pouco, porque se tá pouco é pra cantar mais. 

Assim raiam os dias na ROC (República das Orelhas Cabeludas), essa gloriosa utopia onde forças armadas e civis brucutus brincam à sombra de um mesmo delírio. Uma incubadora de sonhos infantis. Um coliseu onde homens mal crescidos, Dom Quixotes de araque, podem encenar fantasias imaturas de coragem e heroísmo, herdadas em reprises mal assimiladas de filmes de guerra e cowboys, sublimadas até que tivessem textura para tapar os ocos deixados pela alienação parental e rancores da garotice. 

É tão desse jeito que o exército, até na hora de gastar, gasta feito criança: a mesada vai toda embora com leite condensado e espoleta.E a orelha lá, empachada de cabelo.