À sombra do negacionismo
Dado o caráter disruptivo do governo Bolsonaro, sempre me indaguei sobre as margens de ação da oposição, especialmente a parlamentar. Entre as opções possíveis, especulava sobre as vantagens da criação de um Gabinete Sombra (shadow cabinet) pelos opositores ao governo.
Em termos práticos, além de fiscalizar e controlar o governo, a oposição teria condições de produzir e apresentar políticas alternativas, garantindo também a formulação de proposições e projetos para as disputas políticas vindouras. O Gabinete Sombra permitiria, portanto, a tradução efetiva de uma oposição que fosse a contrapartida a um governo no qual se testemunhava o desmonte de políticas públicas e o retrocesso em direitos conquistados pós-1988.
A criação e atuação clássica do Gabinete Sombra remonta à experiência política britânica. De acordo com os cientistas políticos Paulo Peres e Gabriella Bezerra, o shadow cabinet configura uma posição institucional delimitada à oposição parlamentar, naquele regime, que atua como governo em espera, apresentando “políticas alternativas e mostrando-se preparado para assumir as funções de governo a qualquer momento”.
No último mês, acompanhando a CPI da Covid, vimos alguns integrantes da Comissão de Inquérito questionarem depoentes sobre a existência de um gabinete paralelo, que seria composto por médicos, empresários e auxiliares políticos que prestavam assessoria informal a Bolsonaro acerca da política de condução do enfrentamento à pandemia. Alguém pode se perguntar: por que investigar a existência desse grupo é tão importante? Voltaremos a esse ponto.
A tese do gabinete paralelo, que vem se constituindo elemento central na investigação, ganhou robustez com a veiculação do vídeo de uma reunião com a presença do presidente em que estão reunidos alguns médicos(as). Nesse encontro, são levantadas suspeitas sobre a eficácia das vacinas e também é feita a defesa do uso da hidroxicloroquina para tratamento da Covid. Foi mencionada ainda a necessidade de um grupo para aconselhar o governo, o qual não exigiria exposição “à popularidade e à imprensa”.
Curiosamente, o virologista Paulo Zanoto, que se encarregou da sugestão, usou o termo shadow cabinet para caracterizar tal grupo. Ora, nada mais contrário à noção de Gabinete Sombra do que o grupo sugerido por Zanoto. Ao esmiuçarmos o uso da expressão, no entanto, podemos levantar algumas questões que nos ajudam a refletir sobre o governo Bolsonaro.
Primeiro, como vimos, o shadow cabinet refere-se à atuação da oposição face ao governo. Desconsiderando a imprecisão conceitual, poderíamos nos indagar: qual é o sentido de existir um Gabinete Sombra em relação ao Ministério da Saúde do próprio governo? Isso traria algum ganho político para Bolsonaro e seu grupo? Se sim, qual?
Segundo, e mais problemático, foi revelada no vídeo a indicação de que os membros de tal grupo não deveriam estar sob escrutínio público. Aqui devemos refletir: em termos de políticas públicas, qual seria a contribuição de um gabinete que não necessariamente teria que se expor (explicar) diante da população e da imprensa?
Como encarar o fato de que as estratégias de saúde pública de enfrentamento à pandemia seriam criadas e conduzidas por agentes que não são nomeados com funções públicas delimitadas, não são identificáveis publicamente e cujo trabalho não pode ser acompanhado?
Esses últimos termos convergem para discussões que têm ocorrido na CPI da Covid. Como espaço de apuração de responsabilidades, a Comissão necessita identificar se houve de fato a existência desse grupo e compreender em que medida teve participação nas decisões do presidente acerca da condução da pandemia até aqui. Aqui entendemos o porquê é relevante saber da existência do tal gabinete paralelo.
A divulgação do vídeo, como dissemos, dá fôlego à tese do relator da CPI, qual seja: o presidente era orientado por uma espécie de consultoria extraoficial, que estabelecia as linhas de atuação do governo na pandemia (vacinação, políticas de distanciamento, suposto tratamento precoce, etc.), e isso confluiu para o agravamento da situação brasileira.
Governistas, por outro lado, já reagem afirmando que os encontros foram todos oficiais, registrados na agenda presidencial, portanto, públicos. Além do mais, buscam construir a ideia de Bolsonaro como alguém que, num momento crítico do País, está escutando pessoas de dentro e fora do governo.
A batalha de versões segue, portanto, a todo vapor. A CPI retoma hoje, dia 8 de junho, seus trabalhos, e temos uma boa ideia dos assuntos que irão movimentar a semana. Enquanto isso, nós prosseguimos ávidos(as) por sair das sombras em que o Brasil mergulhou.