Bemdito

Amor e desamor no Brasil de Bolsonaro

Editora Cobogó lança peça escrita por Guel Arraes e Jorge Furtado em meio às angústias políticas do Brasil de 2021
POR Magela Lima
(Foto: Marília Castelli)

Marcos, 60, e Paula, 42, são jornalistas profissionais. Ele, editor. Ela, âncora de telejornal. Os dois trabalham numa influente emissora de televisão brasileira. É tarde da noite e eles se preparam para a cobertura do último debate do segundo turno entre os candidatos a Presidente do Brasil nas eleições de 2022. Finalizada entre Rio de Janeiro e Porto Alegre, às 16h27, do último dia 5 de julho e recém-lançada pela Coleção Dramaturgia da editora Cobogó, a peça O debate, parceria do pernambucano Guel Arraes e do gaúcho Jorge Furtado, se lambuza de presente para alertar sobre os riscos de um futuro, tão assustador quanto possível, que está logo ali.

No texto, os autores vão flagrar o último e definitivo embate público entre Lula e Bolsonaro, supostamente em empate técnico na disputa eleitoral do ano que vem, a partir da discussão de temas como o direito ao aborto, a regularização do trabalho das empregas domésticas, a corrupção envolvendo dinheiro público, o combate à violência, o comércio irrestrito de armas de fogo e, como era de se esperar, a pandemia da Covid-19. Na imaginação de Guel Arraes e Jorge Furtado, em outubro de 2022, o vírus ainda assusta e corre solto, com uma tal de variante Sigma, 10 vezes mais contagiosa, impondo a necessidade de aplicação generalizada de uma terceira dose de vacina. A peça, justiça seja feita, não é sobre Lula e Bolsonaro, não.

O debate é sobre um conjunto curioso de abstrações: uma abstração chamada Brasil, outra chamada jornalismo, outra chamada democracia e, por fim e mais importante, uma abstração chamada amor. Os autores, a todo instante, vão questionar os limites gerais dessas ideias, como elas se configuram no senso comum e, fundamentalmente, como têm sido desafiadas pelo enfrentamento político recente. Mais experiente, Marcos fala como professor que foi. Paula, por sua vez, já não se contenta no lugar de aluna. Os dois têm visões de mundo muito parecidas, mas performam de forma particular. Marcos lida melhor com o tempo. Paula tem pressa. Marcos é mais resignado. Paula tem coragem pelos dois para mudar o mundo.

Pouco experimentados no teatro – um estreia em 1996, dirigindo com João Falcão O burguês ridículo, de Molière, e monta, também com João e Adriana Falcão, O Auto da Compadecida em 1999; outro escreve a peça infantil Pedro Malazarte e a arara gigante – Guel Arraes e Jorge Furtado localizam O debate num ambiente que eles conhecem em detalhes. A ação é toda organizada nos bastidores de uma emissora de televisão e tem o ritmo de uma transmissão exibida em tempo real. Enquanto Bolsonaro e Lula se enfrentam no estúdio, Marcos e Paula vão repercutindo as temáticas e posicionamentos defendidos pelos candidatos.

Os dois, na verdade, estão preparando a cobertura do telejornal que segue o debate na programação. É aí que o jornalismo acaba se fazendo um personagem da narrativa. Marcos, na lida de redação há muito mais tempo que Paula, trabalha com uma ideia de isenção e objetividade que Paula, pelo menos em tese, se atreve a desafiar. Impossível ler o texto e não lembrar que Jorge Furtado já tratou dos limites do jornalismo em sua obra cinematográfica. Marcos, facilmente, poderia ter sido um dos figurões entrevistados pelo cineasta para o documentário O Mercado de Notícias, de 2014.

O compromisso ético dos profissionais de imprensa, no entanto, é mero acessório na trama. Até Lula e Bolsonaro acabam por ficar em segundo plano em O debate. A peça não se configura como exercício de construção de personagens legendárias. O registro dos méritos e deméritos dos prováveis candidatos a Presidente servem como pretexto para Marcos e Paula, recém-separados, subverterem a rotina intensa de trabalho, particularmente naquele dia específico, e esgarçarem ao extremo o fim de um casamento que durou 18 anos. Sim, O debate, enquanto poética, é uma exemplar peça de conversação, cujo tema central é, em última instância, a história de amor e desamor dos dois jornalistas. 

Em meio a todas as questões políticas do Brasil de 2021 e à ameaça concreta de reeleição de Bolsonaro em 2022 – Guel Arraes e Jorge Furtado, embora temerosos, anunciam, nas entrelinhas, um futuro ainda mais desastroso – O debate reivindica um tanto de atenção à vida privada. A intimidade sobrevive, apesar das agruras coletivas. Marcos e Paula, apesar da consciência e compromisso social apurados, têm todo um horizonte de assuntos domésticos para resolver. O relacionamento dos dois acabou há pouco mais de três semanas. As dores e, consequentemente, as dúvidas, assim, ainda estão muito afloradas. Eles sofrem por eles, enquanto sofrem pelo Brasil. Sofrem e fumam desenfreadamente.

A dramaturgia alinha uma reflexão de natureza política com uma série de discussões banais de uma relação amorosa que precisa aceitar seu fim. Guel Arraes e Jorge Furtado jogam bem com essa combinação, mas o debate travado por Marcos e Paula exagera na pieguice. O repertório de fim de relacionamento que os autores recorrem não podia ser mais clichê. Marcos, por exemplo, questiona se Paula o deixou por ele ser mais velho. Paula, a seu tempo, vai demonstrar sua maturidade revelando que entende as traições de Marcos durante o casamento. Fato é: Guel Arraes e Jorge Furtado não conseguiram construir tipos que surpreendam. A peça, que chama atenção pela força e pela realidade de um possível encontro cara-a-cara de Lula com Bolsonaro, não demonstra mesma vitalidade naquilo que tem de ficcional. 

Serviço
O debate
Guel Arraes e Jorge Furtado
80 páginas
Editora Cobogó, 2021 
Preço: R$ 36

Magela Lima

Crítico e pesquisador de teatro, tem mestrado e doutorado em Artes Cênicas.