As vidas e as cartas de Milada Horáková
“Percebes o que te digo, não percebes? Se não, a tia Vera explicar-te-á o que queria dizer. E assim, minha única filha, pequena Jana, nova vida, minha esperança, meu futuro perdão, vive! Agarra a vida com as duas mãos. Até ao meu último suspiro, rezarei pela tua felicidade, minha querida filha.“
Trecho final de uma das cartas de Horáková para sua única filha, Jana
A maioria dos filmes de guerra retrata a trajetória dos homens em combate – seus sofrimentos, perdas, dores e violências – tanto aquelas que eles exercem sobre os chamados inimigos, quanto todas as que eles mesmos são vítimas. Filmes que abordam as guerras sob a ótica da política e disputas de poder também escrutinam as relações masculinas em gabinetes fechados, tribunais militares e nos salões dos chefes de estado. Glória feita de sangue, de Kubrick, O resgate do soldado Ryan, de Spielberg, Apocalypse Now, de Francis Ford Copolla: três filmes consagrados como obras primas do cinema – cada um à sua maneira, estilo e tempo, mostraram a face de horror dos maiores conflitos bélicos do século 20: a primeira e a segunda guerra mundial e a guerra do Vietnã.
Durante muitos anos, filmes de guerra me intrigavam e comoviam muitíssimo, pelo seu poder de mostrar um retrato sem retoques da banalidade do mal e de tudo que o ser humano é capaz de fazer quando levado ao seu extremo – em busca da manutenção do poder ou pelo desespero de salvar sua própria vida. Porém, em algum momento da minha vida que não consigo precisar com exatidão qual foi, uma pergunta sobre os relatos fílmicos feitos sobre as guerras me veio à mente. Quando esse questionamento surgiu, ele me pareceu tão óbvio que me senti envergonhada – fiquei constrangida em silêncio por entender algo que tinha me escapado por tanto tempo.
O cinema é feito de olhar e eu me deixei guiar pelos olhares que escolhiam – a partir dos roteiros e pelo movimento das câmeras – o que e quem eu deveria ver, os ondes e os quandos que receberiam a minha atenção, os porquês que não eram meus, mas que respondiam perguntas prontas como se elas fossem minhas.
Minha pergunta tardia nasceu e cresceu assim: onde estão os relatos sobre o que passam e sofrem as mulheres durante os anos de guerra? De qualquer um dos muitos e infelizes conflitos que já rasgaram e estremeceram tantos países em tantos anos, décadas e séculos diferentes? Por que eu assisti e ainda assisto tantas guerras com olhos e corpo e sofrimento de homens? Por que, na minha vontade de entender o ser humano, eu só alcançava relatos incompletos? E não eram as mulheres também afetadas e despedaçadas por aqueles terríveis conflitos? Por que as pouquíssimas mulheres que assisti nesse gênero de filmes estavam sempre chorando por seus parceiros em batalha e nunca lutando suas próprias parcelas de guerra? Como é ser uma mulher e testemunhar uma guerra? Como é ter sua vida marcada pelo extremo da violência e como é seguir em frente? Com quais palavras e ações se rebelam ou se desesperam as mulheres no meio da barbárie? E como morrem as mulheres durante as invasões e ataques? E quem conta suas histórias? Existem olhos, ouvidos, atenção e vontade para as ouvirmos? Existem homens e, sobretudo, mulheres, dispostos a deixar o olhar, a voz e a história das mulheres guiarem a nossa vontade de assistir, sentir e entender o mundo e suas convulsões?
Foi essa inquietação que me apresentou o filme Milada. Milada Horáková foi uma grande política tcheca, julgada e condenada à morte pelo partido comunista sob falsas acusações de conspiração contra o regime e traição à pátria. Nascida no dia 25 de dezembro de 1901, em Praga, capital da República Tcheca, aos 17 anos foi expulsa de sua escola por participar de uma manifestação contra a Primeira Guerra Mundial. Entre 1927 a 1940, Horáková trabalhou no departamento de assistência social, em sua cidade natal. Em 1939, Milada se tornou membro do movimento de resistência contra a ocupação alemã na Tchecoslováquia.
Juntamente com seu marido, a ativista foi presa e interrogada pela Gestapo. Em 1940, foi enviada para o campo de concentração de Terezín, onde foi submetida ao trabalho forçado e às torturas físicas e psicológicas. Foi libertada em 1945, devido aos avanços das tropas aliadas e, após sua soltura, juntou-se à liderança do Partido Socialista Nacional Tchecoslovaco, recém-reconstituído. Porém, apenas em um espaço de cinco anos, Milada assistiu à ascensão do partido comunista em seu país e, recusando-se a fugir para se proteger, foi presa. Após sofrer muitas sessões de tortura, Horakóvá foi submetida a um falso julgamento que a condenou, juntamente com outros cidadãos, à morte.
Milada, a mulher que, tendo assistido aos horrores da primeira grande guerra quando tão jovem, tendo sobrevivido ao regime nazista e aos campos de concentração alemães, foi morta pelos integrantes do partido comunista que tinham invadido e tomado o poder à força na República Tcheca. Uma mulher que nunca foi enviada com tropas armadas para os campos de batalha. Uma mulher cujas únicas armas eram a palavra, sua inteligência e sua preocupação com o serviço social e com as famílias de seu país que viviam assombradas pelas guerras passadas e ameaçadas pelas guerras futuras. Uma mulher cujo mais precioso legado deixado para sua única filha, Jana – as cartas que escreveu para ela durante todos os anos em que ficou presa – só foi finalmente entregue para Jana quarenta anos depois de sua morte, após a queda do regime comunista.
Horakóvá morreu injustamente e suas palavras permaneceram trancadas por quarenta anos após sua morte. Todos os dias, durante quarenta anos, mataram Milada repetidamente: mataram sua póstuma voz, ignoraram sua descendência, silenciaram os ecos da sua vida. Retiraram das suas palavras o som e o sentido. Petrificaram o orgânico e sagrado vínculo que enlaça as gerações. Enquanto não foram lidas, as cartas, mesmo escritas, não existiam. E, também a própria Milada, feito uma mulher suspensa em um limbo: a mulher que estava morta, mas que foi condenada a nunca ter existido.
Milada Horáková lutou muitas guerras, mesmo sendo uma civil. Teve sua vida, seu corpo e sua morte transpassados pelos conflitos que demoliram a Europa, por anos a fio. Tornou-se para sua filha, suas netas que não conheceu, suas bisnetas e toda sua descendência a marca de uma mulher que viveu e morreu como uma combatente desarmada, porém incapaz de recuar frente ao seu dever. Só existiu, nesse mundo, uma Milada Horáková.
Entretanto, todas as mulheres que tiveram a infelicidade de viver em tempos de guerra e em países envolvidos em batalhas nos legaram suas histórias e suas verdades. É absurdamente mandatório nos perguntarmos, sempre, sobre os tempos de paz e os tempos de guerra: o que faziam, onde estavam, o que sentiam e como era a vida das mulheres? Como podemos ouvi-las? Como conseguimos vê-las? Mesmo que de relance, mesmo que de muito longe -, como devemos pensar e o que devemos nos perguntar para, ao menos, sinalizarmos que honramos sua existência, sua passagem por essa terra?
A barbárie esmaga e mastiga a todos, mas estamos condicionados e dispostos para receber os relatos de poucos… Temos os olhos que brilham com as glórias e que choram com os desesperos daquilo que só os homens recebem atenção para contar. A pergunta que quero fazer: e as mulheres? Nessa guerra, nesse tempo, nesse país, nesse planeta: o que aconteceu com as mulheres? O que elas viram? O que elas têm a dizer? Tenho tempo e vontade plenos de atenção para vê-las e ouvi-las.
Quero, anseio e preciso encontrar e sorver o que outras mulheres testemunharam com seus olhos, o que sustentou seus dias, quem cruzou seus caminhos. Quero saber como foi estar sob sua própria pele e quero que me contem com suas próprias palavras, olhos, mãos, glórias, medos, desejos, guerras, paz, sonhos e aflições. Jana precisou lutar uma vida inteira para segurar entre os dedos as cartas de sua mãe, para ler o que ela tinha para dizer, para respirar suas palavras. Precisamos, todas nós, buscarmos por esses relatos extraviados, retidos, encolhidos entre pesadas e propositais pilhas de papeis e afazeres que desviam nossa atenção, que aliciam a nossa vontade e interesse.
Precisamos brigar para alcançar nossos relatos perdidos – digo nossos porque somos, ao mesmo tempo, destinatárias das mulheres de outrora e, também, remetentes de um legado que pode vir a se perder da mesmíssima forma como se perderam os das mulheres antes de nós. Precisamos ter a vontade e a necessidade por essas palavras, lutar para conhecer essas mulheres e suas histórias, pare ler essas cartas enviadas em silêncio para os olhos e as almas do futuro. Todos esses relatos não chegarão até nós de outra forma. Como as cartas de Milada e seu torturante caminho até as mãos de Jana, eles nunca chegarão até nós de bom grado.