Bemdito

Bolsonaro e nazismo: até quando?

Encontro com deputada alemã de extrema-direita e neta de nazista, Beatrix Von Storch, levanta questões sobre proximidade de Bolsonaro com nazismo
POR Ricardo Evandro

Tendo a sempre desconfiar dos recursos retóricos muito fáceis. Se não tomamos cuidado, facilmente podemos cair no ato de acusar o outro de nazista. Isso virou até uma falácia, com direito ao seu próprio nome em latim: reductio ad hitlerum.

Essa falácia consiste, basicamente, em acusar o posicionamento de alguém de “nazista”, mesmo não tendo nenhuma característica ideológica que se justifique. Em verdade, essa é uma falácia que apela a um lugar comum muito compreensível e justo, o de que tudo associado ao nazismo, a Hitler, está errado e está desqualificado.

Agora, se por acaso alguém discursa em tom racista, antissemita, supremacista, expansionista, falando, por exemplo, em arte degenerada, também com um tom muito nacionalista, ufanista, ora saudosista, incorrendo, eventualmente, em xenofobia, com tom conspiracionista, anticomunista, de direita, com ética militarista, pretensamente popular, escondendo sua aliança com as elites econômicas, então, já não se estaria diante de uma falácia, mas de um discurso mesmo muito provavelmente nazi-fascista.

O governo Bolsonaro não tem passado ileso dessas acusações. É comum ver nas manifestações de esquerda a associação da figura de Bolsonaro com Hitler ou com o nazismo. Isso é algo interessante de se comentar e de se refletir porque há sempre o risco de se incorrer em calúnia ao reduzir um líder político como Jair Bolsonaro ao nazismo. Risco não apenas do crime de calúnia – ou de ser preso, como sabemos –, pois, como disse, há risco de se incorrer numa mera falácia.

Sobre isso, lembro, aqui, que cheguei a publicar no ano passado, no Le Monde Diplomatique, um artigo chamado Ernesto Araújo e o Nazismo no Brasil. Para além da discussão sobre a apropriação indevida, pelo até então chanceler brasileiro, dos pensamentos de Slavoj Zizek e de Giorgio Agamben, pude lembrar de alguns fatos marcantes na história brasileira com relação ao partido e à ideologia de Hitler. 

Nesse meu artigo, lembrei de como o Brasil foi destino de importantes oficiais nazistas. Esse foi o caso do médico-monstro Josef Mengele. Também destaquei a quase despercebida expedição nazista na Amazônia, quando aportaram na minha cidade, na Belém dos anos 1930. Mas o problema é que talvez as relações com os nazistas não tenham se encerrado com a morte, por muito tempo anônima, de Mengele, no litoral do Estado de São Paulo, nos anos 80.

Em janeiro de 2020, o recém-empossado secretário de cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, fez uma inesquecível peça de publicidade sobre seus planos no cargo. Na cena, chamaram a atenção os objetos cenográficos e a trilha sonora de fundo. A cruz ortodoxa sobre a mesa, uma foto do seu líder político na parede, a música de Richard Wagner de fundo, já seriam, supostamente, mais que o bastante para nos remeter ao que fazia Joseph Goebbles em suas propagandas, enquanto Ministro da Propaganda do regime de exceção dos nazistas. Mas não bastava isso, também nos discursos de Alvim havia uma, também supostamente, incrível coincidência com trechos de um dos discursos de Goebbles.

Neste fim de julho, de 2021, dentre os escândalos de, supostamente, atos de prevaricação, somadas às suspeitas de corrupção na compra de vacinas contra Covid-19, mais os escândalos de, supostamente, compra de um aparelho sofisticadíssimo de espionagem pelo governo brasileiro, também tomamos notícia de que a deputada alemã de extrema-direita, Beatrix Von Storch, foi recebida pela base aliada de Bolsonaro no parlamento brasileiro, como fez a Deputada Bia Kicis, e por um de seus ministros, o astronauta Marcos Pontes.

Sobre o encontro, o próprio presidente chegou a perguntar: “Eu não posso receber essa deputada? Foi eleita democraticamente na Alemanha”. E Bolsonaro está certo: é verdade que Von Storch foi eleita na República alemã. Mas também é verdade que essa deputada alemã é neta do ministro das finanças do regime de Hitler, Lutz von Krosigk. 

Contudo, preciso dizer que, já que tenho falado sobre falácia, não poderia lançar mão aqui de uma argumentação a qual concluísse algo de ruim sobre tal deputada germânica simplesmente porque ela é neta de um nazista. Em tese, isso seria só uma falácia ad hominem, em conjunto com uma ad hitlerum. Com isto, a ascendência de Von Storch poderia dizer quase nada. Afinal, alguém poderia perguntar: que culpa – ao menos individualmente falando – ela teria por ser neta de um nazista?

Independentemente desses problemas lógicos, há o problema do também verdadeiro fato de que a imprensa alemã deu uma notícia sobre como a referida deputada faz parte de um partido investigado pela inteligência interna alemã por suspeitas de ameaçar a ordem democrática da Alemanha. Além disso, Von Storch teria se manifestado a favor de que se atirassem em refugiados nas fronteiras de seu país, não importando se fossem mulheres ou crianças. 

No seu perfil oficial, no Twitter, o Museu do Holocausto, da cidade de Curitiba, chegou a se manifestar sobre a recepção da deputada alemã pela deputada bolsonarista Bia Kicis: “É evidente a preocupação e a inquietude que esta aproximação entre tal figura parlamentar brasileira e Beatrix von Storch representam para os esforços de construção de uma memória coletiva do Holocausto no Brasil e para nossa própria democracia.”.

Diante desses fatos, então pergunto: será que seria mesmo tão falacioso associar o bolsonarismo ao nazismo? Ou isso se trataria de mero estratagema retórico para desqualificar o governo e seus aliados? Haveria uma obsessão por estar, quase sempre, vinculado aos símbolos, discurso, pessoas associadas aos nazismo? Até mesmo o “chavão” do presidente tem essa coincidência com a propaganda nazista, quando falava sobre “Alemanha acima de tudo”. 

Talvez, mais urgente seria saber: até que ponto essas coincidências se seguirão? Até quando?

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.