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Bruxas, putas e foras da lei #2

No segundo capítulo da série sobre as avós subversivas, uma reflexão sobre as origens da lei e sobre as zonas de sombra criadas pelo desejo Juliana Dinizjulianacdcampos@gmail.com A forma como a sociedade reagiu durante séculos (e, de certo modo, ainda reage) à ameaça representada pelas bruxas diz muito sobre como as identidades são construídas não… Continuar lendo Bruxas, putas e foras da lei #2
POR Juliana Diniz
Ilustração de Charles Lessa

No segundo capítulo da série sobre as avós subversivas, uma reflexão sobre as origens da lei e sobre as zonas de sombra criadas pelo desejo

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

A forma como a sociedade reagiu durante séculos (e, de certo modo, ainda reage) à ameaça representada pelas bruxas diz muito sobre como as identidades são construídas não só pelos sujeitos, no movimento constante do eu em busca de si, mas também pelo grupo, num processo de comunhão coletiva constantemente alimentada por símbolos. A bruxa personifica no imaginário uma ameaça porque ela é a prova social de que uma mulher não domesticada degenera em sua predisposição ao pecado e ao vício, e pode provocar riscos, ameaças à saúde e à ordem das instituições. A bruxa é a mulher não normalizável, aquela que vive à margem da lei, indiferente aos seus efeitos.

O que importa, portanto, é a demonstração de que a lei é fundamental, de que a severidade da punição funciona como censura e exemplo, e de que a inobservância dos modelos de comportamento tem como consequência a perda de controle sobre impulsos que levam à perdição da alma. A mulher queimada na fogueira não é apenas a ré punida, é a lembrança em praça pública do destino esperado para todas as que sintam o chamado à desobediência. O espetáculo da expiação pelas chamas, a cenografia da execução e o enredo encenado cuidadosamente pelo Tribunal do Santo Ofício nos autos de fé dizem muito sobre o aspecto essencialmente performático das condenações, o desejo de inspirar pelo medo e assegurar a eficácia da lei.

Ser de ciclos, que sangra mensalmente sem morrer e guarda nas entranhas do corpo o mistério da concepção e do nascimento, a mulher é desde a Antiguidade associada à “força oculta da natureza” mencionada por Jeffrey Russell, um ser cuja distinção biológica e psicológica do funcionamento masculino é indicativo de mistério, inspirando temor. Há, nesse ser lunar e misterioso, algo de intangível que precisa de uma vigilância constante – a serpente, a sereia, a sedutora fundamental há de ser contida.

A inspiração ancestral de respeito e reverência ao feminino presente em muitas culturas matriarcais da Antiguidade se transforma lentamente em seu oposto, graças a um trabalho difuso, mas eficiente, de difusão de narrativas sobre a feminilidade, cada vez mais mistificada, disputada e incompreensível. Lentamente a feminilidade deixa de ser o domínio de interesse das mulheres e passa ao controle discursivo dos homens, que a tomam como um aspecto importante para o exercício do poder. Poucos personagens se prestaram tão bem a esse papel como Eva. 

Em livro sobre o feminino através dos tempos, Martha Robles menciona a pena fundamental daquela que deixa a condição de deusa para se converter em filha e esposa de Adão. Segundo a escritora, “a mulher, desde então, arrasta consigo o tríplice preconceito de haver cedido ao chamado do diabo; de se atrever a incitar ao pecado não a qualquer homem, porém ao mais inocente e puro de todos – àquele que, havendo resistido ao poder da serpente maligna, é seduzido, por sua própria inclinação, a sucumbir ante a imagem perfeita de seu Criador -; e, finalmente, de ser a culpada pela perda do Paraíso”. 

Eva congrega dois aspectos fundamentais da faceta degradada do feminino – a intimidade com o diabo e uma sexualidade fervilhante. Consumida pelo desejo e inspirada pelos piores sentimentos, é Eva que recebe os artifícios para enganar, dissumular, ignorar a lei em nome do prazer e da satisfação. A associação entre fraqueza ameaçadora e necessidade de punição é inevitável: “desde o ponto de vista do Gênesis, do Novo Testamento, do Talmude, do Alcorão, do hadith e da mariologia, a mulher é a menos racional, a mais profana do casal e a culpada pela queda da humanidade. Responsável pelo pecado original e herdeira do poderoso caráter das deusas pagãs, inspira uma doutrina que somente adquire sentido por meio da expiação purificadora”, como afirma Robles.

A imposição da lei surge como resposta a essa força fundamental: uma lei que castra o instinto, o desejo e domestica a sexualidade. 

A tensão permanente entre a moralidade religiosa do cristianismo e o desejo sexual recairá de modo mais rigoroso sobre as mulheres, que perdem o controle sobre a livre da experimentação da sexualidade. Confinadas à maternidade e ao sexo para fins de reprodução, as mulheres serão alvo de toda sorte de vigilâncias, controles e mistificações. O risco representado pelo prazer sexual será constantemente relembrado, como ameaça que lembra à consciência nossa fraqueza original. 

Todo o controle social sobre a sexualidade e a demonização do sexo não serão suficientes para evitar a pulsão que permanece viva, de modo que, ao culpabilizar o gozo, a sociedade cria espaços escuros dentro dos quais a mulher acaba por se prestar a reforçar os estereótipos ligados à sua condição pecaminosa. Ao habitar essa zona de sombra, a mulher perde a condição de legítima e honesta, ainda que ardis assegurem a emergência de figuras deliciosamente ambíguas. Em maravilhoso livro, a escritora Ana Miranda resgata uma coleção de poemas luxuriosos, românticos, escritos por freiras e inspirados por elas, sobre a devassidão que acontece em segredo no interior dos mosteiros e conventos. 

“Já que tem de ser, que seja em segredo”, escrevia a freira ao seu pretendente. Ela o convidava, então, a assistir ao sermão. Recomendava-lhe que ficasse em pé para que pudessem olhar-se. Quando se abriam as cortinas do coro, as freiras entoavam suas belíssimas vozes respondendo às antífonas, e os olhos não se desprendiam. Elas fruíam a volúpia de serem desejadas e admiradas; eles, a da violação do pudor feminino e do dogma religioso”. A imagem das religiosas tão próximas das putas mostra como a identidade feminina pode ser fugidia, dada a apropriações e trânsitos, invariavelmente servindo para situar a mulher num lugar que ora é de pura degradação, ora é de contenção penosa. 

No próximo e último artigo da série, abordarei como essa cisão fundamental da identidade feminina e essa oscilação latente perpassam discursos muito próximos do nosso tempo, se imiscuindo no Direito, na lei moderna e nos códigos civis e penais que ainda nos regulam.  Às putas e às bruxas do tempo presente, ainda se faz indispensável o rigor da lei.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Serviço

Que seja em segredo: escritos de devassidão nos conventos brasileiros e portugueses dos séculos XVII e XVIII 
Ana Miranda
128 pgs
Editora L&PM (2014)

Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos
Martha Robles
448 pgs
Editora Goya (2019)

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.