Bemdito

Do Ceará para o Brasil, camarão e ostentação

Ambiente frio e cardápio metido a besta representam a culinária do Estado no resto do Brasil
POR Marcos Nogueira

Queiram ou não, ambiente frio e cardápio metido a besta representam a culinária do Estado no resto do Brasil

Marcos Nogueira
contato@cozinhabruta.com

Trancado no apartamento em São Paulo, morro de saudade do meu Ceará.

O “meu” não quer dizer que eu seja cearense, muito menos que tenha a pretensão de me tornar dono de qualquer coisa.

O pronome possessivo diz respeito à memória cujo acesso é exclusivamente meu. As lembranças são fragmentos de sensações e eventos que o cérebro grava com edição, supressão, compressão e extensão – deforma conforme a vontade do freguês e, à medida que a idade avança, segue a adulterar o arquivo salvo.

Assim, o leitor cearense deve perdoar o relato incoerente com a observação de uma realidade que você, obviamente, conhece muito melhor do que eu. É nesse território onírico que eu fui feliz.

Conheci o Ceará no distante 1989, em expedição rodoviária estudantil cujo pretexto era um congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em Fortaleza. Esticamos para Jericoacoara, ainda uma vila de pescadores, sem luz e sem água encanada. Voltaria mais sete vezes, sempre a passeio e nunca por menos de uma semana.

Minhas lembranças gastronômicas do Ceará são de camarão e lagosta e pargo fresco numa cabana qualquer à beira-mar. De baião-de-dois, carne-de-sol, farinha, manteiga da terra. Uma comida intensa, simples, solar.

Até que, numa dessas viagens, em 2003, meus amigos resolveram comer numa pizzaria chamada Coco Bambu. Se a droga de memória não me falha, tinha chão de areia e guarda-sóis de carnaúba no centro das mesas. O ambiente ornava com uma visão meio folclórica, meio autêntica, sei lá, quem era eu para opinar sobre todo aquele sapé?

A memória, ainda que capenga, salta para a São Paulo de 2012. Editor de uma revista masculina, fui convidado para a inauguração da primeira unidade do restaurante Coco Bambu na cidade.

No lugar do teto de palha e do chão de areia, um ambiente estéril, com iluminação indireta, ar-condicionado glacial, formalidade e impessoalidade de aeroporto – sensação aeroportuária amplificada pela imensidão do restaurante, um mausoléu de dois andares no Itaim.

Se hoje o cardápio tem até uma seção “fit”, a estreia paulistana investia 100% nas porções gigantescas de camarão. Era difícil encontrar alguma opção sem creme de leite ou queijo. Ou alcaparra, champignon, “ervas finas”, qualquer coisa com a sofisticação fake de família rica de novela das nove.

Essa comida pesada e metida a besta, rango ostentação, não bate com as minhas memórias gustativas do Ceará.

Amigos cearenses: não sei se vocês percebem, mas o Coco Bambu é a imagem da sua culinária no resto do Brasil. Não há muitos restaurantes de comida cearense fora do Ceará, mas Coco Bambu há por toda parte.

O Ceará merece mais. Até a minha memória mequetrefe sabe disso.

Marcos Nogueira é jornalista especializado em gastronomia. Pode ser encontrado no Cozinha Bruta, no Twitter e no Instagram.

Esta coluna manifesta a opinião do/a autor/a.

Marcos Nogueira

Jornalista, assina a coluna Cozinha Bruta, uma das mais lidas da Folha de S. Paulo, desde 2008.