Como o grupo de mães me ajuda a sobreviver ao ensino remoto
Uma crônica sobre a solidão materna na pandemia e os escapes que ajudam as mulheres a lidar com o ensino remoto
Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com
Eu sempre fui uma participante silenciosa e ausente de grupos de Whatsapp. Tenho minhas razões, que vão da dificuldade de administrar um turbilhão de mensagens simultâneas à incapacidade de admitir para quem me inclui que tenho uma certa preguiça para interação por mensagem de texto. É uma dúvida genuína de etiqueta contemporânea: dá pra sair de grupo sem parecer antipático? É possível desertar de grupo da família sem ficar banido do próximo natal? A dúvida procede porque, muitas vezes, a saída é mais eloquente que uma declaração: sair pode equivaler a recusar.
Com o grupo de mães da escola – uma instituição eficiente e inescapável – nunca foi diferente, e venho aqui reconhecer uma dívida. Sempre estive ali, mas interagia pouco, passava dias e dias sem acompanhar, e não por desinteresse, mas por incapacidade. Essa ausência silenciosa mudou radicalmente nos últimos meses por uma necessidade de sobrevivência. Explico o porquê.
Quando a pandemia chegou, o risco sanitário mandou nossas crianças para o confinamento em casa, sem perspectiva de volta segura. Já são meses e meses de incerteza, administrando o medo de morrer e um desafio pedagógico novo: transformar, de um dia para noite, a experiência escolar presencial em estratégias educacionais remotas – via zoom, ebook e tudo mais que pudesse ser feito à distância. Não é preciso dizer que, mesmo reconhecendo o esforço imenso de escolas, professores, crianças e pais, o ensino remoto piorou consideravelmente o nível de ansiedade e stress durante a pandemia. É um inferno e tenho vontade de desistir quase todos os dias.
As crianças sofrem porque é pedir demais que se mantenham concentradas e dedicadas a uma atividade que as desafia tão pouco – ficar parado na frente de uma tela para uma videoconferência é penoso até para nós adultos, e atire a primeira pedra quem nunca silenciou microfone e interrompeu o vídeo para esticar as pernas e comer um biscoito enquanto uma reunião de trabalho chatíssima acontece. Para as mães (e falo em mães especialmente, porque somos nós mulheres que costumamos receber esse tipo de encargo) foi um tormento maior porque ainda não inventaram uma fórmula para que uma alma possa, ao mesmo tempo, atender às expectativas do maldito home office e acompanhar as aulas online das crianças. Tentar acumular os papeis tem nos deixado esgotadas, adoecidas, sem conseguir dar conta de uma coisa ou outra. Se eu não fosse tão desastrada em invocar ditados populares, diria algo que remetesse à ideia de que não se pode atender a dois senhores, deve haver um ditado para algo do tipo.
A pandemia, afinal, expôs a dureza que certas obrigações podem oferecer.
Isso porque ser mãe é viver em dúvida e sofrer de culpa (provavelmente está na conta das penitências que carregamos por conta do pecado original da amiga Eva, que invoquei em texto publicado dias atrás). É um sofrimento solitário, que não amansa com os anos, só muda de foco. Eu vejo minha mãe, eu sei que ela sofre invariavelmente, mesmo que eu diga para ela relaxar. A pandemia e o desafio das aulas remotas agravaram esse estado de solidão e nos deixou ainda mais confusas sobre qual o melhor caminho a tomar. Sobre como fazemos para ser mãe, professora, trabalhadora, psicóloga e sanitarista. E o pior, sem que pudéssemos recorrer à rede de apoio que costuma nos socorrer – a psicóloga da escola, a médica, a professora, as muitas mulheres que compartilham conosco as tarefas de cuidar. É inútil recorrer à tela de um profissional para resolver o problema de esgotamento das telas – às vezes, tudo que você precisa é de um rosto próximo que sorri e interage ao som da sua voz. O isolamento nos privou disso, do paraquedas de emergência.
Aqui, ao falar da solidão pandêmica, retorno à minha dívida com o grupo de mães da escola, porque essa instituição não tem falhado comigo desde o início da quarentena. É no grupo de mães da escola que eu descubro que as dificuldades que me atormentam também atormentam a Fabiana, a Lana, a Mariana e a Alice. Que seus filhos também estão irritados e resistentes às aulas online, que elas também se sentem cansadas e incapazes, que compartilhamos dos piores instintos quando sai mais uma prorrogação do decreto do governador. Calma, a gente sabe que é preciso, a gente sabe que não dá para mandar as crianças em pleno pico de contaminação, mas ninguém é de ferro e o governador, uma alma boa e caridosa, vai entender que, na hora da crise, as mães também precisam escoar a frustração de forma inofensiva em um bode expiatório. E inofensivo porque o que se diz fica ali, entre nós, como uma roda terapêutica. Foi nesse contexto que recebi a figurinha do Camilo ilustrada pela legenda “só mais 15 dias” e dei, pela primeira vez em muitos dias, uma gargalhada sincera.
No fim das contas, o maior serviço que o grupo de mães tem me ofertado é a sensação de aconchego que oferece a solidariedade. Algo como: amiga, segura as pontas aí, aqui também tá difícil, tamo junta, vai passar. Sou grata a essas mães – e colegas – por isso. É a elas que agradeço pela risada do vídeo compartilhado de um pai em estado de graça quando entregou a filha na escola em uma das reaberturas: “aleluia, Senhor, graças a deus, Jesus, vá com Deus, minha filha!”. Talvez eu só tenha muita sorte, porque nos grupos de que participo e participei nunca apareceu nenhuma mensagem política odiosa de apoio ao que é inominável.
São mulheres com histórias diferentes, olhares diferentes, ideologias diferentes, mas muito conscientes do limite civilizatório. Nem sempre concordamos, e mesmo o tema sobre mandar ou não mandar as crianças para as aulas com a pandemia em curso – quando as escolas foram autorizadas a recebê-las – nos fazia discordar, com respeito. Pensando sobre esse lado, me dou conta de que tive sim um bocado de sorte, porque grupos de Whatsapp podem oferecer o inverso da experiência de acolhimento e ser um dos lugares mais adoecedores que um democrata pode estar, mas mas aí é assunto para outro texto.
Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.